Quinze dias de ausência. A gentileza de leitores amigos fê-los perguntar se tudo estaria bem comigo. E estava, descontado o excesso de trabalho na profissão e nos deveres cívicos a ela inerentes, vivido com o remorso de estar a deixar este espaço ao abandono. Não que sem ele o mundo não pareça o mesmo, sim porque é por ele que me obrigo a estar atento a esse mundo e a manter a ilusão de que posso, numa mínima medida, mudar alguma coisa e permitir que se mantenha algo do que ainda reste.
No intervalo de ter estado aqui, foi-me possível intervir num evento, organizado pela Universidade Lusófona em estilo comemorativo dos 40 anos da aprovação do diploma que estabeleceu o ilícito de mera ordenação social, comemoração que correu a par com a da entrada em vigor do Código Penal de 1982, de que o aprovado em 1995 é, afinal, uma continuação modificada.
Pensado como regime jurídico para os ilícitos não criminais menores – como já escrevi aqui não é por acaso que o vocábulo “mera” integra a sua designação – visou, como Alexandra Vilela frisou no encontro, oferecer alternativa que evitasse a hiper-criminalização pelo Direito Penal secundário. Só que, parece-me, não evitou, porquanto esse aí está, florescente.
Construído na base de um regime que, parecendo geral, não o é, pois acaba por ser subsidiário ante os regimes específicos sectoriais, sobretudo os aplicáveis aos reguladores de mercado, esta subsidiariedade foi potenciada pela equívoca remissão para o Direito Penal e para o Direito Processual Penal, remissão até para um diploma que se supunha provisório e que visava regular as entretanto ainda subsistentes contravenções penais. E tudo agora complicado com um outro regime aplicável às contraordenações económicas.
Equivocidade remissiva a gerar incerteza quanto ao âmbito de aplicação das normas e quanto à determinação das próprias normas aplicáveis, em virtude dela passa a pertencer aos aplicadores da lei a definição do âmbito de aplicação dessas zonas jurídico-criminais que, recorde-se, são Direito Constitucional aplicado, que assim se estende e retrai conforme seja ou não compatível com o que se entenda serem os princípios gerais do Direito de mera ordenação social, noção ambígua e volúvel.
Cruza-se esta ductibilidade da integração com o que rememorei, citando as palavras de um juiz do Tribunal Constitucional, o controlo de constitucionalidade «de baixa intensidade», que tem viabilizado as mais insólitas previsões legislativas. E este particular mereceu palavras de viva preocupação por parte de José de Faria Costa, que presidia à mesa.
Enfim, levado ao extremo de permitir a aplicação de medidas punitivas mais violentas do que as previstas no Direito Criminal, ademais de valoração arbitrária, como o ilustrou, no âmbito das contraordenações laborais, a intervenção de Tiago Ferreira Morais, o Direito das Contraordenações é hoje um instrumento rentável, às mãos dos órgãos legislativos para, através de uma “manipulação de etiquetas” permitir sancionar com severidade e sobretudo com proveito financeiro.
Mais se me reforçou, ao findar a amigável sessão, a necessidade de se definir, numa lei-quadro reforçada e como tal balizadora da extensão máximas dos regimes sectoriais. Já num colóquio organizado pelo Forum Penal formulei esta sugestão. Retorquiram-me que era perigosa pois permitirá que se aprove, como regime geral obrigatório, a totalidade das soluções mais repressivas que já constam dos estatutos dos ditos reguladores: a irrecorribilidade generalizada, a predominância da fase administrativa, a dispensa da presença de advogado, o efeito meramente devolutivo, a reformatio in peius e que, por isso e em suma, ante essa temível galeria de horrores, para mal já basta assim!
É este, pois, o nosso tempo, o tempo do medo.