A decisão foi tirada no contexto do processo civil mas, até pela aplicação subsidiária deste ordenamento ao processo penal, o princípio vale para este. Está em causa saber se a citação em peça processual de uma hiperligação, a qual remete para o documento, equivale, para efeitos probatórios, à junção do próprio documento.
O Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 3 de Outubro de 2024 [proferido no processo 1479/23.8T6VNF.G1.S1, 2ª Secção, relator Emídio Santos, texto integral aqui] entendeu que não. Vale a pena transcrever este excerto da fundamentação para se captar o sentido do decidido:
«Em primeiro lugar, as hiperligações não se ajustam ao conceito de documento electrónico, dado pelo art.º 3.º n.º 35 do Regulamento (EU) n.º 910/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de Julho de 2014, relativo à identificação eletrónica e aos serviços de confiança para as transações eletrónicas no mercado interno. Enquanto, segundo este preceito, documento electrónico é “qualquer conteúdo armazenado em formato eletrónico, nomeadamente texto ou gravação sonora, visual ou audiovisual”, a hiperligação é um elemento de um documento electrónico que permite a visualização de outro documento ou de outra parte do mesmo documento existente noutro sítio internet. É, pois, uma técnica ou um sistema de reenvio que permite passar de um documento para outra parte dele ou para outro documento alojado noutro sítio internet.
«Em segundo lugar, embora seja exacta a alegação do recorrente de que se assiste a uma crescente desmaterialização dos actos judiciais e se caminha para uma sociedade digital, a sua pretensão de ver nas hiperligações um meio processualmente válido de apresentar documentos tem contra si o regime da junção dos documentos ao processo (artigo 442.º, n.ºs 2 e 3 do CPC) e o exercício do contraditório. Vejamos.
Segundo o n.º 2 do artigo 442.º do CPC, os documentos incorporam-se no processo, salvo se, por sua natureza, não puderem ser incorporados ou houver inconveniente na sua incorporação; neste caso ficam depositados na secretaria, por forma a que as partes os possam examinar.
«Por sua vez, o n.º 3 estabelece que os documentos não podem ser retirados senão depois de passar em julgado a decisão que põe termo à causa, salvo se o respectivo possuidor justificar a necessidade de restituição antecipada, neste caso fica no processo cópia integral, obrigando-se a pessoa a quem forem restituídos a exibir o original sempre que isso lhe seja exigido.
«Dos preceitos acabados de transcrever decorre que os documentos formam com o processo um só corpo e que devem estar disponíveis para o tribunal, para as partes e para os que têm o direito de examinar e consultar o processo desde o momento da sua junção até ao trânsito em julgado da decisão que põe termo à causa.
«Se é certo que a hiperligação permite a visualização do documento, também é certo que não o incorpora no processo, nem garante que ele fique à disposição do tribunal e das partes até à decisão que põe termo à causa. E não garante porque o conteúdo de um sítio internet ao qual uma hiperligação permite aceder pode ser suprimido, alterado ou restringido após a criação dessa ligação. Isto é, a hiperligação não garante a disponibilidade dos documentos até à extinção da instância.
«Vejamos, agora, as razões pelas quais a técnica de juntar documentos através do recurso a hiperligações não garante o exercício pleno do contraditório por parte do réu ou da parte a quem for oposto o documento para que remete a hiperligação.
Segundo o n.º 3 do artigo 219.º do CPC, “A citação e as notificações são sempre acompanhadas de todos os elementos e cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objecto”. Socorrendo-nos das palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, a propósito deste preceito, “O n.º 3 institui o princípio da transparência da citação e da notificação, impondo a completude e legibilidade dos elementos necessários à compreensão do ato recetício em causa” [Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, página 252].
«Se o réu, na citação, ou a parte a quem é oposto o documento, na notificação, em vez de receber os documentos, recebesse apenas a indicação da hiperligação para os sítios internet onde estão alojados os documentos, a completude e a legibilidade dos elementos necessários à plena compreensão do objecto da citação e da notificação não seriam assegurados, o que redundaria em prejuízo para a defesa do réu e para o exercício do contraditório da parte a quem o documento era oposto.
«Observe-se por último, contra a pretensão do recorrente, que quando as citações e as notificações forem realizadas por via electrónica, o que a lei consente é que os elementos necessários à plena compreensão do objecto da citação ou notificação constem de outro suporte electrónico acessível ao citando (alínea b) do n.º 4 do artigo 219.º do CPC).
«Por todo o exposto é de concluir no sentido de que a inserção no texto de um documento em formato electrónico de uma hiperligação para um sítio internet onde está alojado um documento que se pretende apresentar como meio de prova não constitui meio processualmente válido de apresentar prova documental».