Tenho mantido no quinzenário cultural As Artes entre as Letras, que se edita no Porto, uma coluna intitulada Notas à Margem da Lei.
Permito-me divulgar o último texto publicado, que denominei A Luta pelo Direito:
«Houve um tempo em que a escrita académica sobre o Direito que, no entanto, não é simples, era, porém, suficientemente compreensível, mesmo a dos mestres, não só os divulgadores ou os da escrita didáctica.
A opacidade surgiria, no campo universitário, ao modo germânico, com o alongamento frásico, a cascatas de discursos interpostos, a forma verbal acantonada no final do período; a juntar a tudo isto, a importação dos neologismos, já não os helénicos ou latinos, mas a pura transposição de termos da língua alemã, mesmo com equivalência no nosso vocabulário e, enfim, ao nível discursivo, uma helicoidal permanente de remate inconclusivo.
À ideia deste modo dito assim teutonicamente filosofante de pensar o Direito, somou-se o facto de os assim seus cultores, pela ambiguidade conclusiva do seu discurso, assumirem o Direito como se dogmática pudesse ser, quando a volubilidade da expressão e a indiferenciação das soluções o situa, assim, afinal, no campo da retórica, quando não até da própria sofística.
Estudos há, por isso, cuja incompreensibilidade os faz correr o risco da inutilidade; e, no entanto, são graves, e, sobretudo doutorais, com o devido respeito pela qualidade da esforçada investigação subjacente.
E, no entanto, o Direito é suposto regular a vida do cidadão comum e este não pode eximir-se a conhecer o Direito que, pela forma como assim surge revelado, mais parece fruto de oráculos caprichosos.
Se esta contradição fosse para ser tomada a sério, haveria que rever os alicerces da edificação normativa em que damos como assente o nosso universo legal.
Além disso, houve um tempo em que o decidir judicial sobre o Direito que, no entanto, é complexo, era razoavelmente previsível e isso mesmo ante os tribunais de primeira instância, face aos quais os temas jurídicos, sempre mesclados embora com a extrema prolixidade dos factos, surgia como pertencente ao domínio do expectável. Hoje, não há jurisprudência que se uniformize que colha respeito, o mesmo tribunal decide uma coisa e a sua contrária ante a mesma norma da mesma lei.
Sendo este o contexto, fica-me a noção de que apodar o Direito como ciência exige desta noção, que o positivismo tornou fetiche, uma conceptualização muito particular, a de ter de se reinventar a, aliás, vaga noção de ciências do espírito.
Apodar o Direito como ciência devolve-nos, porém, a uns, o aparente sentimento de conforto a sugerir rigor onde, afinal, reina a incerteza, a outros, a segurança de passarem as suas soluções voluntaristas como se legitimadas fossem por uma técnica de pouco provável erro.
E, no entanto, ganhar-se-ia verdade ao considerar o Direito como uma Arte. Tal exige, naturalmente, libertar-nos da ideia de haver que construir, como jurídico, um edifício sistemático, logicamente congruente e de universo totalizador, que abranja tudo e tudo resolva, em troca com um Direito menos abstracto, mas mais individualizado, menos tecnocrático e iminentemente humano, mais próximo da especificidade do caso, temperado, porém, pela lógica indutiva dos precedentes.
Não quer isto sugerir que não deva haver uma filosofia sobre o Direito legislado, mas urge, sobretudo, que haja uma filosofia que pondere, sobretudo, o Direito aplicado, este o mais real.
Para além disso, importa relevar que interpretar e aplicar o Direito deve supor uma concepção filosófica sobre o Direito, sendo, porém, que não é esse o mundo em que nos encontramos, tornado o jurídico geralmente como mera burocracia, sem ideias exigíveis a seu respeito, estas tidas por perigosas ao permitirem duvidar da cómoda literalidade da lei, salvo quando uma conveniente conformação ideológica se ajusta a um determinado modo de achar solução para além da lei e, não tão poucas vezes assim, ao arrepio da própria lei.
Não é despiciendo ponderar em que medida na Universidade se ensina a interpretar o Direito no primeiro ano do curso, na cadeira de Introdução, colocando o aluno ante o modo de assim encontrar um Direito que ele, afinal, não conhece, pois vai ser ensinado nos anos subsequentes da licenciatura.
Isto e uma outra noção sobre a qual vale a pena um minuto de atenção: é que ensinar o Direito, e não necessariamente apenas ensinar leis, deveria ser o propósito fundamental do ensino jurídico.
É que ao longo da sua vida, o agora ainda estudante vai ser confrontado com um Direito irrequieto e em constante mutação, em novação sucessiva; e o que faltará então é modo de interpretar esse desconhecido.
Fico por aqui. O Verão permitiu estas notas. A encontrar uma orientação que mais de quarenta anos de contacto profissional com o Direito me socorre nos momentos depressivos, socorro-me da que dá título a esta crónica de regresso: o Direito é, afinal, a luta pelo Direito. Uma obra de Rudolf von Jhering, cuja edição actualizada em português seria mais do útil, edificante.