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A luta da advocacia pelo Estado de Direito [conclusão]

Publico a segunda parte de uma conferência comemorativa do 50º aniversário do Conselho Regional de Évora e que ocorreu sob o lema: “A Luta da Advocacia pelo Estado de Direito”, que teve lugar no passado dia 20 em Santarém. Desta vez a menção é ao Bastonário Mário Raposo.

As circunstâncias históricas que condicionaram o mandato do Bastonário Almeida Ribeiro adensaram-se quando Mário Raposo assumiu o cargo para o desempenhar no triénio de 1975-1977, em eleição na qual, concorrendo também Eduardo de Figueiredo e Guilherme da Palma Carlos, obteria, em sufrágio, uma expressiva maioria.

Revendo o que foi dado viver então no nosso País, arrisco-me a dizer que foi, no dizer da Bastonária Maria de Jesus Serra Lopes «o Bastonário certo na hora incerta».

O país entrara em convulsão.

A sua aptidão política e os seus dotes diplomáticos, que articulava com a bonomia e maleabilidade intelectual, facultavam-lhe os meios necessários para enfrentar as adversidades que se prefiguravam no horizonte, na justiça em geral e na advocacia em particular.

Com gentileza e verdade a Maria de Jesus Serra Lopes diria a seu respeito: «Como lhe deve ter pesado o cargo… Só o seu fino trato, inteligência, saber, afabilidade e simpatia, em suma a elegância com que se conduzia na vida, lhe terão permitido superar com brilho tão difícil prova».

Não foi, pois, surpresa o facto de, após a missão na nossa Ordem, ter desempenhado as funções de deputado e de Presidente da Comissão Parlamentar de Direitos Liberdades e Garantias e, por quatro vezes, o cargo de ministro da Justiça no 3º, 6º, 9º e 10º governos constitucionais, presididos respectivamente por Nobre da Costa, Mário Soares e Cavaco Silva, ou seja, em registos político-partidários diferenciados. Salgado Zenha, enquanto ministro da Justiça do 1º Governo Provisório, designá-lo-ia para a Comissão de Reforma Judiciária. Desempenharia também o cargo de Provedor de Justiça entre Junho de 1990 e Dezembro de 1991, tendo renunciado ao cargo.

O novo Bastonário assumiu a direcção da Ordem sob a bandeira de a considerar «apartidária e politicamente descomprometida», fórmula adequada a garantir o máximo denominador comum entre a classe, cujos membros se encontravam já amplamente divididos seguindo critérios ideológicos.

Ponto de clivagem com uma nova filosofia que haveria de orientar um Estado de Direito seria o domínio da justiça criminal.

Por um lado, haveria que marcar o contraponto face do regime antecedente, como frisou no seu discurso de tomada de posse:

«O direito processual penal, que sempre constituiu, nos anos do fascismo, um ponto escaldante e uma constante preocupação da Ordem terá de continuar a sê-lo, quando as circunstâncias o impuserem. Às técnicas de privação da liberdade- que poderão pôr em crise o direito do homem à segurança pessoal – estará a Ordem particularmente atenta»

Por outro, haveria que marcar um itinerário de respeito pelos direitos humanos, o que justificou não só a criação de estruturas internas na Ordem orientadas a promover a sua salvaguarda, como um intenso intercâmbio internacional com entidades com credenciais no sector.

No primeiro registo, foi criada a Comissão dos Direitos do Homem, presidida por Adão e Silva.

Mas foi no intercâmbio internacional que o seu empenhamento conseguiu elevar a Ordem a um patamar nunca antes – e permito-me dizer – nunca mais conseguido.

Num momento histórico em que a radicalização social e política fariam a justiça portuguesa ficar isolada no concerto das nações democráticas, Mário Raposo teve a presciência de saber que só a presença entre nós de entidades e personalidades relevantes na área dos direitos humanos garantiriam, em simultâneo, não só o possível no domínio da pedagogia, mas, afinal, a existência de observadores internacionais que acompanhassem de perto o que se estava a passar com a possibilidade de exercerem quanto fosse viável no sentido ma morigeração da tumultuosa crise no sistema jurídico.

Enfim, ante a violência incontrolada que se estava a assistir no país e a situação de desregramento tumultuoso da justiça, com o acantonamento dos tribunais judiciais ante os denominados «julgamentos populares», era fundamental, marcar a incompatibilidade de tudo isso com os princípios fundamentais do Estado de Direito.

Daí que, haja publicado na véspera do dia 25 de Novembro de 1975 um artigo na imprensa, no qual consignou, em nome da Ordem:

«A Ordem dos Advogados, cujo passado é de luta por uma justiça independente, não instrumentalizada pelo Poder Político e objectivada no respeito pelos direitos do Homem, mantém-se coerente e empenhada na institucionalização de um verdadeiro estado de Direito e de Justiça Social. Só que nem sempre a sua voz é ouvida no presente, como também o não foi no passado. Mas mesmo que ela se perca no deserto da indiferença ou colida com os «revolucionarismos» delirantes e de fresca data e tinta mal seca, entende dever significar:

  1. a) Que o Conselho da Revolução, o Governo e, em especial, o Ministério da Justiça, encontrarão nela franca cooperação, quando esta for solicitada e enquanto os objectivos a atingir se situarem nos parâmetros da verdade democrática e de uma bem doseada compatibilização da disciplina social com a liberdade e com a inarredável dignidade da pessoa humana, agente e destino da colectividade.
  2. b) Que a chamada «Justiça Popular», tal como vem a ser concebida no nosso País, constitui o fermento de novas e perigosas formas de opressão e de aviltamento de todos os cidadãos, mesmo daqueles que, como «robots», a vêm, por má fé ou inconsciência a protagonizar – não encontrando hoje sequer paralelo em qualquer país, mesmo nos designados por “socialistas”.
  3. c) Que aos magistrados e aos funcionários judiciais deve ser restituída a perdida autoridade, eficácia operacional e disponibilidade de espírito, o que apenas será conseguível através de uma actuação firme e disciplinada das Forças Armadas, empenhadas como deverão estar na concretização de uma democracia pluralista liberta de primarismos ou de propósitos de apossamento do País por uma minoria detentora, a coberto de ficções ideológicas ou de meras aparências populistas», de novos poderes ditatoriais.
  4. d) Que os princípios consignados na Declaração Universal de 1948 e demais convenções internacionais sobre a protecção dos direitos do Homem deverão encontrar efectiva aplicação, sem reticências de circunstância ou deformações sectárias».

Será difícil a muitos, sobretudo os mais jovens, alcançar a coragem ínsita a subscrever uma tal proclamação. É preciso ter vivido esses tempos ou ter empenho pela cultura histórica para conseguir reconstituir como foram.

Registo que envergonha quem lutou por um 25 de Abril democrático, é que as intoleráveis sevícias praticadas sobre presos sujeitos à guarda da autoridade militar atingiram uma tal dimensão que a 19 de Janeiro de 1976 foi criada uma Comissão para o efeito, para qual foram designados, sob proposta da Ordem, três advogados, um dos quais precisamente o Bastonário Almeida Ribeiro, entidade que elaboraria o que seria conhecido como o relatório sobre as sevícias, no qual se concluiu:

«Independentemente das medidas a adoptar com vista à punição dos responsáveis e à reforma da legislação ainda não efectuada, a Comissão pensa que o presente relatório ficará sempre como denúncia de práticas condenáveis, atropelos às leis, desvios a um Estado Democrático em que o respeito e a garantia dos direitos e liberdades fundamentais é pedra basilar. E será um aviso para o futuro, para que os responsáveis deste País não esqueçam providenciar no sentido de banir, de una vez para sempre, a repetição de actos arbitrários que não passam, no fundo, de conduta totalitária, mesmo quando envolvida em roupagens diferentes. Assim se terá contribuído para a consolidar as instituições portuguesas, a caminho de um verdadeiro Estado de Direito».

Em tal ambiente, fracturante e de crispação, seria a própria existência da Ordem dos Advogados que esteve em causa, considerada, por um lado, como organismo supostamente “fascista” por ter sido criada por acto do ministro Manuel Rodrigues, em 1926, tempo pois da Ditadura Nacional e, por outro, porque tida por incompatível com a organização única dos trabalhadores, categoria em que muitos integravam os advogados, desconsiderando a sua matriz liberal.

Mário Raposo compreendeu bem a gravidade da situação, mas teve a inteligência serena para encontrar razão em muitos dos críticos, abrindo, pois, pela compreensão, uma ponte para o diálogo que garantiu que a Ordem subsistisse.

Afirmara a 21 de Junho de 1974, não sendo ainda Bastonário, numa entrevista à revista Vida Mundial, o princípio pelo qual a Ordem não se poderia tornar num sindicato:

«[…] nada pode justificar a sua conversão num sindicato. Isto pela decisiva razão de que ela não se objectiva apenas na defesa dos interesses de uma classe de trabalhadores, mas, muito mais do que isso, tem como finalidade a defesa do princípio da legalidade, a realização de um Estado de Direito e a salvaguarda das liberdades públicas.

Reiterou-o nas bases da sua candidatura a Bastonário, consignando no manifesto respectivo:

«Enquadram-se os advogados na grande massa trabalhadora, que engloba todos os que trabalham séria e dignamente em qualquer sector profissional. Seria ilegítimo pensar em elitismos ou, ao invés, estabelecer segregações. Mas a Ordem não tem como finalidade apenas representar e tutelar os interesses duma classe. Completamente autonomizada que fique, quanto ao seu funcionamento, face a qualquer hierarquia estadual, prossegue outros objectivos, não já impostos pela salvaguarda de interesses profissionais, mas de interesses colectivos, ao serviço do Povo português, tomado como a universidade viva dos cidadãos».

Consciente da realidade, escreveria, porém:

«Subsistindo a Ordem como tal não é de excluir que, a par dela, e sem prejuizo da sua finalidade de organismo necessariamente congregador de todos os advogados portugueses, se criem, sob a custódia do princípio da livre associação, sindicatos ou outras associações de integração facultativa. Essa a experiência verificável em alguns países, embora quase sempre com reduzida projecção».

Estava aberta a porta ao compromisso respeito pelo princípio da liberdade de associação. Mas acrescentou, para que o pensamento se clarificasse:

«Estará na base dessas associações ou sindicatos livres a defesa dos interesses específicos dos advogados que trabalham com subordinação a vínculos patronais. Ou a existência de especiais afinidades ideológicas ou políticas entre grupos de advogados.

«Mover-se-ão eles, entretanto, numa área diversa da Ordem, e sem exclusão desta, de integração obrigatória. E, como é óbvio, a designação a dar a essas associações ou sindicatos provirá do ânimo que nortear os seus componentes. A isso será a Ordem indiferente».

A vida encarregou-se de mostrar que tinha razão.

Terei de terminar.

De tanto o que deveria dizer, que fique o registo que é o modo fraterno de irmanar os dois Bastonários, afinal, a personalidade humanista de ambos. Mário Raposo soube exprimi-lo a propósito do que deve ser um jurista:

«Sou contra qualquer forma de tecnocracia, enquanto portadora duma ideologia aparentemente modernizadora, mas realmente arcaizante, mal encoberto cavalo de Tróia de concepções alienantes numa sociedade que se quer aberta e humana. O tecnocrata, neste prisma, perde o seu necessário papel de agente critico das mutações sociais e recusa-se a acolher os interesses que não coincidam com os das classes dirigentes.

O advogado, enquanto especializado em qualquer ramo do saber jurídico, integrar-se-á numa sociedade humana e política não tecnocrática. Não coisificará os homens, manipulando-os dentro de mecanismos ideológicos exteriores aos próprios homens. O fim de qualquer técnico – e o advogado é um técnico com muito especiais responsabilidades sociais – será o de servir os outros homens, permitindo a realização da sua personalidade numa perspectiva humanista, e não instrumental».

São palavras cada vez mais actuais sobretudo quando campeiam no universo forense os burocratas da repressão.

O Bastonário Mário Raposo faleceria a 3 de Outubro de 2013. Levaria a distinção ao ponto de ter providenciado para que a sua morte não fosse anunciada.

Termino.

Convoquei dois Bastonários. Ao comemorarmos 50 anos da existência do Conselho Regional de Évora, senti que poderia ser uma forma digna de homenagear a efeméride. Viva, pois, o Conselho Regional de Évora, viva a Ordem dos Advogados, a nossa Ordem. A luta continua!

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