Arquivo a primeira parte da comunicação que, sob o título “Almeida Ribeiro e Mário Raposo: dois exemplos”, apresentei no passado dia 20, em Santarém, numa conferência comemorativa do 50º aniversário do Conselho Regional de Évora e que ocorreu sob o lema: “A Luta da Advocacia pelo Estado de Direito”.
Neste excerto, lembro o Bastonário Ângelo de Almeida Ribeiro; no segundo, a publicar, o Bastonário Mário Raposo.
Antes de mais, uma declaração prévia: a opção que assumi ao escolher estes dois bastonários da nossa Ordem como tema para este encontro tem a ver com as circunstâncias históricas que ambos tiveram de enfrentar e não é acto de secundarização de todos os demais.
Trata-se, pois, de proporcionar uma reflexão, não de intervir sobre a contemporaneidade. Quanto a isso, o meu tempo já passou.
No caso de Ângelo de Almeida Ribeiro, a escolha justifica-se por ter sido coevo, não só com o tempo em que o regime autoritário que, como Revolução Nacional, governou Portugal desde 1926 e se constitucionalizou como Estado Novo a partir de 1933, ensaiava, agora sendo presidente do Governo o professor de Direito Marcello Caetano, uma tímida, mas errática, liberalização, incluindo no sistema de justiça, mas por ter sido contemporâneo também do 25 de Abril, que de movimento militar se transformaria, logo no dia 1º de Maio, em revolução.
Quanto ao seu sucessor no cargo, Mário Raposo, acolhi a referência a si por lhe ter sido dado viver o tempo da aceleração histórica do processo revolucionário post-25 de Abril e aquilo em que este pôs em crise a concepção do Estado, o sistema de justiça e a existência da própria Ordem dos Advogados.
Não se trata, diga-se, de duas biografias, apenas de apontamentos circunstanciais, enquadrados no tempo e que nos permitem extrair como lição quanto há de incerto e precário na vida das instituições e em que medida no que ao Direito respeita, do que se trata, afinal, é precisamente, da luta pelo Direito.
E de dois intrépidos lutadores se trata, ambos, porém, dotados de uma nobreza de carácter e de uma elegância de trato que não podem deixar de ser exemplo.
+
Ângelo de Almeida Ribeiro
Ângelo de Almeida Ribeiro foi Bastonário no triénio de 1972-1974.
Marcello Caetano assumira a presidência do ministério a 27 de Setembro de 1968, liderando o que seria o 103º Governo da República. António de Oliveira Salazar governara, durante 41 anos, 5 meses e 15 dias. Faleceria a 17 de Julho de 1970.
Formalmente corporativista, proclamado na propaganda como democracia orgânica e de presidencialismo bicéfalo, o regime político então vigente era, de facto, um sistema ditadura pessoal.
Tentando assumir uma nova política, mas simultaneamente ensaiando um compromisso com o regime salazarista, cujos ultras o encaravam com desconfiança, Caetano proclama como futuro o lema da evolução na continuidade.
As circunstâncias da História estariam, porém, contra tudo o que ele procurasse pretender.
Apesar de ter ensaiado eleições para a Assembleia Nacional, como então se denominava a câmara legislativa, a crise do regime agudiza-se em todas as frentes e atingiu o seu movimento mais intenso, dentro do próprio aparelho militar, que vinha sustentando a guerra colonial, em 1973 com o surgimento do movimento dos capitães.
Para além disso, o recrudescimento das greves, a luta revolucionária armada, com o surgimento da Acção Revolucionária Armada [ARA] em 1970, o recrudescimento da esquerda revolucionária, a crise académica, logo em Coimbra em 1969, e um ambiente de intriga permanente dentro das instituições, criavam à nova política um ambiente de progressiva fragilidade.
A oposição democrática havia demonstrado, aliás, a 15 de Maio de 1969, a sua pujança com quando do II Congresso Republicano de Aveiro, com a participação de 1.500 delegados, cujas conclusões de um extremo radicalismo não auguravam solução pacífica para a situação.
É neste contexto que o regime tenta uma alteração de cosmética, por manipulação de etiquetas e assim o partido único passa a denominar-se Acção Nacional Popular em vez de União Nacional, a polícia política Direcção Geral de Segurança em vez de Polícia de Investigação e de Defesa do Estado [PIDE], a censura prévia passou a exame prévio.
No plano da sua sobrevivência, fomentou-se o surgimento de uma nova geração de tecnocratas, congregados em torno da SEDES, um clube de reflexão no qual João Salgueiro assume papel de relevo, enquanto a reforma do ensino com Veiga Simão esboçava um novo paradigma escolar.
Com um pé dentro da situação e outro fora, irrompeu então uma plêiade de dezanove deputados, que seria intitulada como ala liberal, liderada pelos advogados Francisco de Sá Carneiro e António Pinto Leite, estrutura que embora inorgânica, abriu o confronto parlamentar sobretudo no campo da justiça criminal e dos direitos fundamentais.
Marcando o tom, a 23 de Janeiro Sá Carneiro formulou um requerimento no Parlamento sobre a situação dos presos políticos e a 9 de Dezembro faria uma intervenção no hemiciclo de São Bento sobre as medidas de segurança aplicáveis ao mesmo tipo de presos.
Nesse ano ocorreria, é certo, a revisão constitucional, pela Lei n.º 3/71, de 16 de Agosto, a qual consagrou um novo figurino de compromisso com alguma abertura, viabilizando a nova política, mas ainda a benefício de reserva de lei, ou seja, de regulamentação posterior. Do ponto de vista de muitos, ao liberalizar-se, o regime evidenciava a sua fragilização.
+
Seria o ano de 1972, o do início do mandato de Almeida Ribeiro como Bastonário, que se revelaria como marco crucial na sorte da situação e sinalizou, simultaneamente, o papel relevante da Ordem dos Advogados na vida pública portuguesa. Era então de cerca de 3.000 o número de advogados inscritos.
No plano interno, o programa de candidatura de Almeida Ribeiro marcava já um sinal significativo face ao transacto domínio pessoal da Ordem, ao prometer, como princípio, a proibição estatutária da reeleição do Bastonário, o que viria a ser sufragado por lei, pondo termo a um fenómeno que permitiu que Pedro Pitta tivesse ocupado aquele cargo, repetidamente, durante 15 anos, entre 1954 e 1971.
A eleição da qual resultou a eleição de Almeida Ribeiro não era por sufrágio directo, mas um colégio de delegados, foi disputada pelo próprio, por Fernando Abranches Ferrão e, afinal, pelo próprio Pedro Pitta, que apesar de ter anunciado a sua intenção de não concorrer, vira o seu nome ser proposto por um número de colegas.
A nova equipa vencedora fazia prever o que se tornaria futuro.
Sá Carneiro era agora membro do Conselho Geral, ao lado de João Paulo Cancella de Abreu, Vasco da Gama Fernandes, Duarte Vidal, Mário Raposo, António Carlos Lima, Carlos Cal Brandão, mais tarde substituído por Armando Bacelar, António Neves Contente Ribeiro, Francisco Tinoco de Faria e Jaime Afreixo, o qual seria substituído por Francisco Salgado Zenha.
Conselho de relativo compromisso entre várias tendências ideológicas, a sua matriz mais característica era ditada pela presença e activismo dos membros democratas, sociais-democratas e socialistas, ou seja, em suma, todos alinhados numa clara linha de oposição à política governamental.
O tempo anunciava-se como de luta pelas ideias e pelas alterações institucionais.
+
Intervenções pontuais marcariam desde logo a linha confronto.
O agora eleito Bastonário sabia em que medida a Ordem havia perdido autoridade na vida pública. Como consignou no seu programa:
«[…] só muito limitadamente, e quase sempre através de convites do legislador, ou iniciativas do Instituto da Conferência, ou intervenções da Câmara Corporativa, de que obrigatoriamente faz parte, é que a sua voz é, por vezes, escutada».
Haveria, pois, que alterar o estilo.
Assim, na sequência de alguns incidentes ocorridos em tribunais, a Ordem interveio junto do Governo endereçando ao Ministro da Justiça:
«[…] veemente protesto com referência ao artigo 10° do Decreto nº 368/72, de 30 de Setembro, em especial quanto às dificuldades postas aos advogados que pretendem assistir aos interrogatórios dos detidos na Direcção-Geral de Segurança».
Do ponto de vista institucional, o programa que Almeida Ribeiro oferecera a sufrágio eleitoral já assinalava algumas medidas que deveriam ser acolhidas no plano da legislação e que a Ordem, por motu proprio sugeriu: assim, uma mais ampla defesa dos arguidos, menor período da prisão preventiva, cessação imediata das medidas ou jurisdições de excepção, seja, o infame Tribunal Plenário, obrigatoriedade de mandados de captura, e a regulamentação em novo moldes do habeas corpus.
+
Seria, porém, o 1º Congresso Nacional dos Advogados o foro que permitiria, não só o amplo, livre e democrático debate em torno de temas que eram até ali matéria vedada, como a formulação de propostas concretas que colocavam o regime reinante ante as suas próprias contradições.
Preparado durante meses, o evento ocorreria entre 16 e 19 de Novembro de 1972, tendo nele participado cerca de 800 advogados.
Anunciando-se como iniciativa «exclusivamente profissional» e sendo parte integrante do seu programa temas que revestiam, de facto, esse perfil, alguns deles logo se orientavam no sentido de acolher discussões de cunho claramente político, como o intitulado «os advogados perante o processo penal», cujo relator se anunciou ser Francisco Salgado Zenha, mas que acabou por ser Francisco de Sá Carneiro, ou «o papel do advogado na sociedade portuguesa», de cujo relato ficou incumbido Jorge Sampaio.
Lendo as conclusões desse notável Congresso, nomeadamente as destas secções, nelas se encontra a defesa de valores que são os da cidadania, da defesa das liberdades públicas e da democracia, em suma, os de um Estado de Direito em sentido próprio.
Recordando o que fora a relevância das conclusões desse Congresso, Almeida Ribeiro diria no discurso de posse do seu sucessor:
«Muitas delas constituíram, nessa altura, actos de coragem cívica e jurídica, que só depois do Movimento de 25 de Abril foi possível concretizar. Essas conclusões, melhor diria, esses ensinamentos, hão-de continuar a servir de fonte de inspiração aos legisladores de agora e vindouros».
Certo é que a dinâmica governamental liberalizadora, que até ali, dava passos curtos, acelerou precisamente nesse altura, o que se traduziu na revisão do Código Penal e do Código de Processo Penal, pelos decretos-lei números 184/72 e 185/72, ambos de 31 de Maio num sentido de afrouxamento do autoritarismo.
Arguto, o Governo efectivou com isso uma jogada de antecipação.
Mas tal não precludiu que as 27 conclusões aprovadas em Congresso para a área criminal ficassem esvaziadas de conteúdo.
Proclamou-se, aliás, nelas a necessidade de revogação do Decreto-Lei n.º 368/72, tido por inconstitucional e «da restante legislação que estabelece regime especial para os processos políticos». Apodou-se de organicamente inconstitucional e violadora do direito à liberdade a regulamentação do habeas corpus que aquele segundo diploma legal aprovara. Consideraram-se inconstitucionais todas as medidas de segurança aplicadas por via administrativa e governamental. Exigiu-se a abolição imediata dos Tribunais Plenários. E aí por diante.
Bastonário de uma Ordem ainda a viver o estertor do antigo regime, Ângelo Vidal d’Almeida Ribeiro seria o primeiro Bastonário de uma Ordem dos Advogados a viver já em democracia.
O 25 de Abril encontrá-lo-ia no termo do mandato, mas não por isso menos empenhado. Anunciando-se como de restauração democrática, o Programa do Movimento das Forças Armadas, seguramente o entusiasmava e correspondia ao paradigma pelo qual a Ordem dos Advogados tinha lutado até então.
Assim, logo a 26 de Abril o Bastonário expediu para o Presidente da então entronizada Junta de Salvação Nacional um telegrama de congratulação com o seguinte teor:
«Bastonário Ordem dos Advogados impossibilitado reunir imediatamente respectivo Conselho Geral desde já manifesta V. Ex.ª incondicional apoio advogados portugueses restauração direitos cívicos e liberdades fundamentais, garantias liberdade individual, extinção jurisdições especiais, dessa independência e dignificação poder judicial pelos quais este organismo profissional sempre tem propugnado […] ».
Certo de representar uma instituição que se orgulhava de não ter compactuado com a face repressiva do regime, o Bastonário Ângelo d’Almeida Ribeiro, não deixou de fazer notar, no editorial do Boletim Informativo da Ordem dos Advogados que:
«[…] antes de 25 de Abril, a Ordem dos Advogados foi das poucas instituições que se manifestaram publicamente, em numerosas circunstâncias, defendendo os direitos e liberdades ameaçadas ou postergados».
A dinâmica estava criada.
A 11 de Maio reuniria uma assembleia plenária dos advogados a qual evidenciava já uma clivagem patente entre os que votaram a moção aprovada, de teor extremamente radical e a proposta moderada subscrita pelo Bastonário e ali perdedora.
É um documento notável, pelo que evidencia em contraponto as duas posições, que muito lamento não poder citar aqui.
+
A intervenção de Almeida Ribeiro na defesa dos direitos fundamentais não cessaria com o seu mandato como Bastonário.
As suas ilusões sobre o que Abril traria seriam ensombradas quando o processo revolucionário em curso, o PREC como então se denominou, entrou numa via de violência a vários níveis que a autoridade instituída não conseguia suster.
Ante o 28 de Setembro desse ano de 1974, ante a vaga de detenções que, sob a alegação de se tratar de um complot sedicioso organizado por uma proclamada «maioria silenciosa», se fizeram sentir, por ordem do COPCON, a Ordem, na sequência de uma visita que o próprio Bastonário fez à prisão de Caxias, e que o levou a diligências junto de Otelo Saraiva de Carvalho, emitiu um comunicado, segundo o qual: «na esteira das tradições da Ordem em situações semelhantes com vista ao rigoroso cumprimento da lei», seriam expostas ao Presidente da República e ao ministro da Justiça:
«[…] as preocupações desta Ordem quanto às variadas reclamações recebidas no que se refere a actos de detenção e busca, contactos dos detidos com os advogados, incomunicabilidade dos detidos com as suas famílias, morosidade na investigação e falta de concretização das acusações».
Lembrando, de novo no discurso de posse ao seu sucessor, afirmou Almeida Ribeiro:
«Recordo, no triénio que finda, os nossos protestos pelo assassinato do estudante Ribeiro dos Santos, por ilegalidades contra advogados que foram candidatos oposicionistas nas eleições de 1973 ; o caso do Dr. Domingos Arouca, perseguido sob a acusação de pertencer à Frelimo; o caso dos padres da Beira ; a solidariedade que demos a advogados vítimas do autoritarismo então reinante nos Tribunais; e dum modo geral, a denúncia de métodos policiais de investigação ou de infracção ao regime prisional humano».
Mas não se ficou por aqui. Permitam-me que cite mais este excerto que é razão de orgulho e de nobreza:
«A nossa Ordem sempre foi considerada como a única entidade que podia censurar abertamente as leis ou as práticas do regime deposto em 25 de Abril. Mas esta tradição da Ordem não tem raiz no «espírito burguês liberalizante» que teriam os seus dirigentes, como já ouvi proclamar a alguns democratas de hoje, de cuja existência nem sequer se suspeitava, quando a Ordem tomava atitudes ou os Colegas defendiam liberdades ameaçadas nos Tribunais Plenários. Não. A Ordem dos Advogados tem sido, e continuará a ser, em quaisquer circunstâncias, seja qual for a política dominante, a paladina vigilante das liberdades e dos Direitos do Homem. Não esqueçamos, por exemplo, que a Ordem dos Advogados nunca cancelou uma inscrição àqueles advogados que eram privados de direitos políticos nas sentenças condenatórias aplicadas nos Tribunais políticos e, até, nos Tribunais comuns. E algumas dezenas de colegas nossos beneficiaram dessa interpretação humanista, que muitos terão considerado um desafio à orgânica antidemocrática que durante meio século nos regeu».
Gostaria de dizer muito mais, o temo é, porém, limitado.
Regressado à advocacia, Ângelo de Almeida Ribeiro seria eleito como Provedor de Justiça em 1985, cargo em que se manteria até 1990.
Faleceu a 9 Janeiro do ano 2000, com 72 anos de idade. Ficou dele o exemplo que quis trazer-vos aqui.
Nas palavras sentidas de António Guterres e que são a síntese moral de uma vida: «ainda bem que há homens assim».
[… continua]