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Excepcional complexidade: (não) audição do arguido…irregularidade

Já me tinha perguntado quando chegaria o dia em que, nesta progressiva caminhada para o desguarnecimento de garantias fundamentais, a audição de arguido em matéria de despacho que decrete a excepcional complexidade do processo passaria a ficar à mercê. Já sucedeu. O Acórdão do Tribunal Constitucional de 21.02.2018 [proferido no processo n.º 1326/2017] e e que me penitencio só agora ter lido, determinou: 
«Não é julgada inconstitucional a interpretação, extraída da conjugação dos artigos 118.º, n.ºs 1 e 2, 123.º, n.º 1 e 215.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, conducente ao sentido de que constitui mera irregularidade a não audição do arguido sobre o requerimento do Ministério Público tendente à declaração da especial complexidade do procedimento, em momento prévio à prolação do despacho judicial que defira esse requerimento, procedendo a tal declaração. A irregularidade só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar, quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado. A preterição do ato obrigatório de audição prévia do arguido é facilmente detetável e a sua invocação não exige uma especial análise do processo, pelo que o regime legal por via da sua qualificação como irregularidade não se traduz num ónus excessivo ou desproporcionado, impendente sobre o arguido prejudicado pelo vício».
Na mira de tentar encontrar uma fundamentação adequada para o decidido o acórdão explicitou:
«No âmbito da definição do regime de invalidades, o legislador ordinário dispõe de uma margem de liberdade de conformação, condicionada pelo respeito do núcleo essencial do direito envolvido.

A questão de saber se a solução normativa, preconizada no critério sob sindicância, se encontra compreendida no âmbito da liberdade de conformação do legislador infraconstitucional reconduz-se, no fundo, à averiguação sobre se a modalidade e intensidade da violação do direito em causa – especificamente, o direito ao exercício do contraditório – vincula, constitucionalmente, à consagração de uma solução mais grave – no âmbito dos vícios de incumprimento das disposições legais – do que a irregularidade.
Nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, “[o] processo criminal assegura todas as garantias de defesa” e, de acordo com o n.º 5 do mesmo preceito, a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar encontram-se subordinados ao princípio do contraditório.
O preceito do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, ao dispor que «o processo penal assegurará todas as garantias de defesa», funciona como cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da proteção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, 4.ª edição revista, I Vol., p. 516). Nas palavras de Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1.ª reimp., Coimbra Editora, 2004 (1.ª ed.: 1974), p. 142), as garantias de defesa impõem um processo estruturado de forma a que ao arguido seja assegurada «a mais ampla possibilidade de tomar posição, a todo o momento, sobre o material que possa ser feito valer processualmente contra si (…)».
No âmbito do Acórdão n.º 555/2008, o Tribunal Constitucional concluiu:
«[a excepcional complexidade do procedimento] é qualificação que, nos termos do n.º 3 do artigo 213.º do CPP, acarreta a elevação dos prazos de prisão preventiva. Por conseguinte, a decisão afecta[ ]pessoalmente[o arguido], incidindo directamente no núcleo do seu direito fundamental à liberdade, pois é susceptível de provocar a extensão temporal de uma medida de coacção que o priva desse bem primário, sendo certo que, por imperativo constitucional (artigo 32.º, n.º 2, da CRP), ele é presumido inocente. É quanto basta para considerar que aqui se fazem sentir, de forma particularmente intensa, as razões garantísticas que dão suporte axiológico ao direito de audição, arredando qualquer justificação, no plano da legitimidade constitucional, de uma interpretação que a dispense».
Naquele aresto, porém, o Tribunal Constitucional apenas se pronunciou sobre a obrigatoriedade de audição do arguido, em caso de declaração oficiosade excecional complexidade do processo, julgando inconstitucional a interpretação normativa, extraída do artigo 215.º, n.º 4, do CPP, conducente à negação dessa obrigatoriedade (sublinhado nosso).
A questão que se coloca no âmbito dos presentes autos é diversa, por não ser problematizada essa obrigatoriedade, sendo, pelo contrário, a mesma pressuposta, a ponto de ser considerado assente que o incumprimento dessa imposição se traduz num vício. A questão decidenda prende-se, como já referimos, com a suficiência, em termos de exigências constitucionais, da qualificação do vício em causa como irregularidade.
Nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, a irregularidade «só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar, quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado».
Embora não especificamente a respeito da norma em crise nestes autos, este Tribunal já se pronunciou sobre casos em que igualmente se discutia a constitucionalidade da consequência – nulidade insanável, nulidade dependente de arguição ou mera irregularidade – ligada ao incumprimento de ónus ou imposições processuais.
Para aquilatar dessa suficiência, convém ter presente, por um lado, que o vício em causa – a preterição do ato obrigatório de audição prévia do arguido – é facilmente detetável e que a sua invocação não exige uma especial análise do processo, pelo que o regime legal convocável por via da sua qualificação como irregularidade não se traduz num ónus excessivo ou desproporcionado, impendente sobre o arguido prejudicado pelo vício (menos ainda nas circunstâncias do caso presente).
De facto, encontrando-se a reposição da legalidade, relativamente ao cumprimento efetivo da formalidade de audição, prevista no artigo 215.º, n.º 4, do CPP, apenas dependente da arguição do respetivo vício pelo arguido, nos termos plasmados no artigo 123.º, n.º 1, do referido diploma, sendo que o mesmo se encontra assistido por defensor, não se vislumbra que esse condicionamento extravase o âmbito de conformação confiado ao legislador, que optou por não colocar todos os vícios no mesmo plano, «gradua[ndo] os seus efeitos de acordo com a respetiva gravidade», como pode ler-se no Acórdão n.º 350/2006, tendo em conta a necessidade de equilíbrio entre a realização da pretensão punitiva do Estado e a tutela de direitos fundamentais dos arguidos.
No Acórdão n.º 429/95 – que, a propósito da nulidade resultante da omissão do dever de informar os arguidos do que se passou, em audiência, na sua ausência, nos casos em que é determinada a audição em separado dos co-arguidos, concluiu pela não desconformidade constitucional das «normas do artigo 343.º, n.º 4, conjugada com a do artigo 120.º, ambos do CPP, interpretadas no sentido de que a nulidade prevista na primeira das referidas normas é sanável» – pode ler-se, nomeadamente, o seguinte:
«Com efeito, como bem faz ressaltar o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal nas suas alegações, no processo penal existem outros valores relevantes para além do direito da defesa à obtenção de uma sentença absolutória:
– o dever de diligência do arguido – e, muito em particular, do defensor que obrigatoriamente o deve assistir ao longo do processo (e da audiência) – que obviamente deverão de imediato reagir contra as nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspectiva de defesa, não podendo naturalmente escudar-se na sua própria negligência no acompanhamento das diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a que estiveram presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam deixar de se aperceber;
– dever de boa fé processual, que naturalmente impedirá que possam – arguido e defensor – ser tentados a aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um «trunfo» para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado».
Nestes termos, aplicando as considerações expendidas ao critério normativo aqui em apreciação, diremos que a interpretação, extraída da conjugação dos artigos 118.º, n.ºs 1 e 2, 123.º, n.º 1, e 215.º, n.ºs 3 e 4, todos do CPP, conducente ao sentido de que constitui mera irregularidade a não audição do arguido sobre o requerimento do Ministério Público tendente à declaração da especial complexidade do procedimento, em momento prévio à prolação do despacho judicial que defira esse requerimento, procedendo a tal declaração, não se apresenta desconforme à Constituição, não extravasando a margem de liberdade que é conferida ao legislador, no âmbito da definição dos vícios correspondentes ao incumprimento das disposições processuais penais».

Ou seja, a lesão de uma garantia primária de defesa – o direito a ser ouvido por juiz antes de este decidir algo tão relevante quanto uma excepcional complexidade do processo, com tudo quanto releva a nível da própria duração do prazo de inquérito e sobretudo da prisão preventiva – fica sanada se não for arguida em três dias.
A lógica do decidido pressupõe três fundamentos de que me permito duvidar:
-» Que há um ónus de arguição [em três dias], sem o que o vício fica sanado;
-» Que a não arguição, dispensa o conhecimento oficioso do vício;
-» Que, ao limite, a defesa até poderia usar como “trunfo” essa não arguição, assim o vício fosse entendido como nulidade insanável [o que consubstancia uma interessante suspeição sobre a defesa e uma jurisprudência defensiva, como se as invalidades fossem não patologias processuais universalmente inaceitáveis mas sim fragilidades face ao adversário arguido].
Resta o que ainda há dias ouvi de autorizada boca: nem todo o mau Direito é inconstitucional. Seguramente. A inversa é também verdade: nem é tudo quanto é constitucional é bom Direito.
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