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O longo penar do sistema penal

Mandam as boas maneiras que não publique aqui a totalidade do texto, quando acaba de sair a revista que o edita, a “Julgar”. Escrevi sobre a Justiça no Estado Novo. Ante muitas das afirmações que ali produzi, críticas para a actualidade por comparação a esse passado, há uma declaração de interesses que julgo necessária: a Justiça desse regime impediu-me de seguir a magistratura, porque, submisso à informação da Direcção-Geral de Segurança a meu respeito – segundo a qual eu «não dava garantias de cooperar na realização dos fins superiores do Estado» – me barrou a porta de acesso ao Ministério Público, então carreira vestibular para a magistratura judicial, mesmo que eu tivesse eleito como primeira comarca a Graciosa, e terminado com «qualquer outra» que se encontrasse vaga.
Digo isto, que já tinha tornado público, porque, num território em que pulula o argumento ad hominem, pelo qual, não se podendo atacar o argumento se ataca a pessoa, é bom que conste.
Ficam pois alguns excertos do que escrevi, os da introdução. O artigo é uma tentativa de síntese histórica, para tentar demonstrar que no campo das leis penais, o regime caído a 25 de Abril, se contentou até 1945 e mesmo depois da Constituição de 1933, com a lógica que provinha da “República Velha” e até da Monarquia – disso é exemplo o Código de Processo Penal de 1929 e a subsistência do Código Penal de 1852/versão de 1886 – e só em 1945 inaugurou um sistema próprio, compatível com a “nova ordem” que, entretanto, o desfecho da Segunda Guerra havia apeado na Europa.

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«Não pretendo que este texto seja um ensaio, um estudo, sim uma crónica. É talvez estilo que, não sendo muito usual entre nós no domínio da literatura jurídica, talvez se adapte a fomentar no leitor o gosto pela sua leitura. Não tem o aparelho de erudição que seria necessário para um trabalho académico. É uma reflexão pessoal de quem, tendo entrado na Faculdade de Direito em 1966, conviveu com um regime político que, à data em que estudou Direito Penal e o seu processo, ainda não havia aquele entrado na fase de liberalização que se assinalaria em 1971, alguém que viveria, quer pela vida prática, quer pela participação na vida pública, o que foi o sistema que irrompeu, no ano de 1974 em revolução, até à Constituição de 1976 e depois disso até à situação a que hoje se chegou, em que não se construiu regime algum e se vive o ocaso da partidocracia tornada administração pública comanditária do capital tornado Europa.
Se me é permitida mais uma nota pessoal, direi que de crítico, o autor destas linhas passou a céptico. Concluiu, na recta final da sua vida de jurista, que tenta tornar em recomeço para ganhar o fôlego da esperança, que, lamentavelmente, em muitas facetas o regime jurídico-penal a que se opôs publicamente, porque era o de uma ditadura, não era pior, em alguma das suas facetas, do que aquele que temos de suportar no que se proclama como sendo uma democracia.»

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«Começo com uma declaração de filosofia própria, ou seja o meu modo de entender as coisas na área do jurídico: para compreender o Direito, nomeadamente o Direito Penal, é preciso surpreende-lo na política lato sensu, nas ideologias, nas crenças e nos interesses, nos a priori dos Estados e das pessoas que os integram como governantes e cidadãos, no próprio espírito do tempo e do lugar, na antropologia global do ser, não apenas na hermenêutica das fórmulas legais.
O Direito não é uma produção liofilizada, bacteriologicamente pura, nem uma silogística alcançável more geometrico como mera operação mental. É também argumentação e legitimação do conveniente, evasão à responsabilidade, triunfo de idiossincrasias feitas teoria, sofisma, expediente. Trata-se da “luta pelo Direito”, como magistralmente o surpreendeu Rudolph Ihering, travada no campo do processo legislativo, antes disso nas estruturas de onde dimana o mando e, com ele, o poder de legislar, e depois disso, nos vários órgãos da Administração da Justiça, locais onde o legislado qual mera corporização intelectual, se torna no Direito a ser sentido na pele pelos destinatários do mesmo, os culpados, os inocentes e o grande vagão do meio, o daqueles relativamente aos quais estes conceitos são meras ficções de territórios seguros, de fronteiras fixas; porque não pode em dicotomia o mundo jurídico conter-se nos binómios verdadeiro/falso, justo/injusto, culpado/inocente.
Digo mais: tudo isto se torna urgente, como bandeira por um repensar as origens num momento de sedução intelectual de tantos com responsabilidades no domínio da justiça penal pelas ideias privatísticas da “justiça negociada”, da própria “pena negociada”, da transação tornada justiça, o “negócio jurídico” a romper do Direito Civil onde contaminou todas as suas estruturas conceituais para o campo do Direito Público e, último reduto, do próprio Direito Criminal, num tempo histórico em que a “taylorização” tomou conta do processo penal, como se ele fosse a linha de montagem da fábrica de automóveis do senhor Henry Ford, em que a estatística e a prevalência do número passaram a critério, nomeadamente em que nos processos a fracção anual entre os pendentes os entrados e os findos é índice de avaliação do bom magistrado, o que mais “despacha” processos, em que a celeridade processual passou a valor maior, com o que significa de triunfo do utilitarismo e do pragmatismo, enfim, os pilares da cultura yankee com o que nisso se contem o “admirável mundo novo” mas também o “far west”, há que afirmar que o processo penal não é apenas um formulário de formalidades, os seus agentes não são “burocratas da coacção”, por mais que o Estado sobrecriminalize para defender os seus réditos fiscais, por mais que situações graves sejam sujeitas a processos celerados pela aceleração legalmente imposta, mesmo quando noções que deviam ter, ou a Constituição é um proclamação vazia, conteúdo e substância como a de arguido, a de excepcional complexidade, a de “facto novo”, a de “indício suficiente”, e tantas outras, acabem reduzidas a pretextos e expedientes para prolongar a prisão preventiva, para sujeitar casos a julgamento onde triunfará a lógica do “logo se verá” os «os mega processos que dão mega absolvições», mundo em que violências processuais inadmissíveis são toleradas como meras irregularidades que três dias de sonolência legitimam, de selectividade punitiva para efeitos de estrondosa exemplaridade, de agraciamento de uns e estigmatização mediática de outros.»

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«A revolução militar do 28 de Maio tornou-se no Estado Novo através da Constituição de 1933.
Aqueles que sonhavam com um regime em que a palavra “revolução” fazia sentido, como forma de ressurgimento nacional contra o demoliberalismo de partidocracia em perpétuo rotativismo em que tornara a então chamada 1ª República pagaram com o exílio e com a liberdade e com a própria vida essa ilusão macabra.
António de Oliveira Salazar, católico conservador, jurista de formação mental, oriundo de uma ruralidade de princípios que nele se tornou atavismo, habilidade e culto da modéstia, temente à religião tradicional do Reino, fiel no culto da Família tendo a autoridade por indiscutível, teceu a teia de que resultou, cinco anos volvidos sobre o 28 de Maio de 1926, um regime que era já uma outra ideia.
Não que o general Gomes da Costa na sua marcha sobre Lisboa, vindo do norte regenerador, tivesse mais ideias do que a de Pátria e Nação. Faltava-lhe, porém, pela positiva, uma filosofia sobre o Estado. Queria a ordem nas ruas e no Estado. Pouco mais e já não era pouco. Portugal tinha caído na banca rota.
Foram anos decisivos os que se viveram então. Entre o nacional-sindicalismo de um Francisco Rolão Preto, que terminaria preso, o restauracionismo monárquico de um Paiva Couceiro, que se finaria derrotado, ia um mundo, tudo caldeado pelas tentativas de subversão da banda anarquista, filo-comunista e as sobrevivências já dispersas dos que tinham sobrevivido às hostes republicanas.
Em 1933 uma falsidade política legitimou a Constituição de 1933. Sujeita a “referendo popular”, nela as abstenções valiam como aprovação com base num sofisma tão cínico quanto seria o de os próprios mortos valerem como votos na urna.
Como é sabido a política de “neutralidade colaborante” de Portugal durante a Segunda Guerra permitiu que Salazar se mantivesse no poder quando em 1945 a sorte das armas fez claudicar as ambições imperiais do III Reich de Adolph Hitler e do Eixo nazi-fascista.
Esse perdurar do salazarismo, que se esgotara como política nova, e entraria em agonia com o início da insurgência armada nas colónias em 1961, com a revolta da baixa de Cassanje e a invasão de Goa pela União Indiana, em que já só se tratava, contra os «ventos da História» em saber resistir, foi – e como tantos historiadores arregimentados fingem esquecê-lo – obra da gratidão aliada, favor à cedência aos americanos da base dos Açores, aos esforços que permitiram, para garantia britânica, que Francisco Franco Bahamonde, o Generlaíssimo, não alinhasse com a Alemanha, resistindo a Hitler naquele vagão de caminho-de-ferro em Hendaye, colocando a ensanguentada Espanha em situação de não-beligerância, enfim, por haver fechado dos olhos às deslealdades da Loira Albion, a nossa mais velha Aliada, a Grã-Bretanha.
Seria apenas em 1971 que, caído Salazar, empossado Marcelo José das Neves Alves Caetano, um jurista administrativista que perdera viço quando como Presidente do Conselho, que se daria, com os limites políticos da denominada “evolução na continuidade” a liberalização política do regime com a aprovação da revisão constitucional.
Marcelo tinha bebido na juventude na fonte da militância, escrevera com Albano Guimarães, os vibrantes cadernos da “Ordem Nova”, que fundara em 1926, fora Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa, pagando do seu honrado bolso, a própria farda – mas finara-se nos ímpetos pela docência conservadora, refrigério agora para uma tragédia pessoal, que por um instante intervalar se cruzaria aliás com o Direito Penal, numas magras mas e interessantes lições proferidas ao ano jurídico de 1938-1939, onde aflora um tímido tomismo e com ele o substrato vago de um Direito Natural, tudo cruzando, em intermitência, com passagens por cargos governativos, como a Presidência e as Colónias, onde o seu estilo reformista e organizador se mostrou operosamente, mas também a sua heterodoxia.
Tudo assim seria até à revolução militar do 25 de Abril, logo tornada no 1º de Maio o “levantamento nacional popular” que os sectores comunistas haviam proclamado como sendo o “rumo à vitória” contra o regime político que reduziam ao conceito de “fascismo”, irmanando-o, sem distinguir, ao de Mussolini e ao nazismo do cabo austríaco agora Chanceler do Reich dos mil anos…
A Constituição de 1976 daria legitimação ao que saíra de um “putsch” castrense tornado revolução, e cumpriria o desígnio de todas as Leis Fundamentais, a de impor uma nova «ordem social estabelecida», travando, não sem sobressaltos, o que havia mudar. Aos novos donos dos interesses apeados juntaram-se, regressados, muitos dos que retomaram o que lhes tinha sido tirado e todos irmanados no bloco central de interesses.»

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