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Comentando o novo CPP: a Santa Liberdade (1)

Artigo 193º, n.º 3

«3 – Quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares».

Comentário: a formulação nova traduz um critério de favor à liberdade, louvável, mas que pode levar à mesma situação em que caíu a regra generosa prevista e mantida no n.º 2, segundo a qual «a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção».
É que esta excepcionalidade da prisão preventiva, que o legislador de 1987 clausulou, com ingénua expectativa, deu numa prática inversa da pretendida. Ora, visto o histórico, esta proclamação amável para com os arguidos, poderá ser mais uma ilusão, a juntar a outras, em que a jurisprudência real não acompanhará a reforma virtual.

Artigo 194º, n.º 2

«2 – Durante o inquérito, o juiz não pode aplicar medida de coacção ou de garantia patrimonial mais grave que a requerida pelo Ministério Público, sob pena de nulidade».

Comentário: ante a polémica jurisprudencial sobre se o juiz poderia aplicar medida coactiva ou de garantia patrimonial diversa ou mais grave do que a proposta pelo MP, o legislador limita-se a impedir o agravamento judicial, deixando em aberto a possibilidade de convolação para medida diversa daquela que lhe houver sido requerida.
Consagra-se a lógica do juiz de instrução como mero fiscal da legalidade formal em matérias atinentes com a liberdade, como se o estatuto de liberdade individual fosse algo cuja aferição concreta coubesse ao MP, pois que mero instrumento ao serviço da investigação. É a filosofia do ao MP é que cabe dizer se lhe «interessa» um arguido em liberdade ou preso, tão presente na mentalidade de alguns.
O sistema agora consagrado é, ademais, equívoco, pois, por exemplo, ante uma medida de tiplogia aberta como a prevista no artigo 200º [proibição de permanência, de ausência e de contactos] fica por resolver se o juiz pode decretar medida tipificada em alínea diversa daquela outra que o MP houver requerido. Conflitos de entendimento jurisprudencial à vista!

Artigo 194º, n.º 3

«3 – A aplicação referida no n.º 1 é precedida de audição do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141.º»

Comentário: ao sistema pelo qual a aplicação de uma medida de coacção é «precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido», segue-se um outro em que a regra é o contraditório, só excepcionado em casos de «impossibilidade devidamente fundamentada». Na aparência, excelente.
O problema grave da não audição prévia não surge, porém, a propósito a propósito da aplicação de uma medida, pois, em regra, esta é precedida de detenção com subsequente sujeição do detido ao primeiro interrogatório judicial.
A questão coloca-se quando se trata do reexame dos pressupostos da prisão preventiva [artigo 213º], em que se manteve o insuportável regime segundo o qual «sempre que necessário, o juiz ouve o Ministério Público e o arguido», porta aberta para a lesão à audiência.
Ou seja, estando o arguido privado da liberdade, tratando-se de controlar a legalidade do acto de mantutenção da prisão, o preso só é ouvido quando «necessário»!
O caricatural é que, dispensando-se ouvir o interessado numa matéria com este relevo, mantem-se uma regra geral de pura aparência liberal segundo a qual o arguido goza do direito de «ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoamente o afecte» [alínea b) do n.º 1 do artigo 61º do CPP]. Rever a manutenção da prisão só pode ser algo que não afecta o arguido pessoalmente, para que tudo isto tenha lógica!

Artigo 194º, ns.º 4 e 5

«4 – A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade: a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime; c) A qualificação jurídica dos factos imputados; d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º
«5 – Sem prejuízo do disposto na alínea b) do número anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 3.

Comentário: é louvável este afã de fazer fundamentar a decisão sobre medidas coactivas e de garantia patrimonial e de taxar como nulidade a violação respectiva.
A alínea b) do n.º 4 parece pressupor uma regra que o legislador se esqueceu de enunciar – a de que a «descrição dos factos concretamente imputados» pressupõe uma referência aos «elementos do processo» que os indiciam.
Abre-se, assim, uma excepção a uma regra inexistente. E, se regra existisse, aliás, o conteúdo da excepção esvaziava o seu alcance, permitindo entorses ao dever de fundamentar que, enunciados que estão através de conceitos abertos [«puser gravemente em causa a investigação»] são essencialmente insindicáveis em recurso, dada a sua amplitude discricionária.
Além disso a alínea d) deveria ter sido unificada com a alínea a), até porque, a não o ter sido, legitima-se a ideia de que a excepção prevista na alínea b), já referida, aplica-se à situação tipificada na segunda e não na primeira, o que é ilógico.

Artigos 194º, n.º 6

6 – Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 4, o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição de recurso.

Comentário: uma vez mais a excepção liquida a regra. O direito de acesso a auto pode ser negado de modo insindicável, pois que negável discricionariamente.
Além disso, a lei prevê que o acesso pelo arguido e seu defensor seja aos «elementos do pocesso determinantes da apliação da medida de coacção ou de garantia patrimonial» e como o legislador, como vimos, se esqueceu de prever uma regra pela qual o juiz deve mencionar quais os elementos do processo relevantes, fica-se sem saber de que acesso estamos a falar. Ao limite, pois que tudo é relevante para indiciar o crime, e é em função do tipo de crime que se decreta uma medida como as que estão em causa, o arguido e o seu defensor podem ter acesso a todo o processo. Duvido que o legislador tenha querido isso ou a jurisprudência aceite um tal desventramento dos autos em favor do investigado.

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