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Alterações ao Código de Processo Penal: a minha opinião

Correspondendo a generoso convite do Círculo Cultural do Supremo Tribunal de Justiça, proferi no passado dia 23 de Abril, no salão nobre daquele Tribunal uma conferência sobre as alterações ao Código de Processo Penal. O anterior Governo tinha designado uma comissão para o efeito, que foi reposta pela ministra da Justiça.

Foi este o texto lido. Destinar-se-á a publicação, uma vez revisto e ajustado ao estilo não oral que presidiu ao que segue. Até então, fica aqui o que penso sobre o assunto.

O Código de Processo Penal desde que foi aprovado, em 1987, sofreu 49 alterações; é-me proposto que traga aqui a minha perspectiva sobre o que ainda faltará alterar, no pressuposto de que a justiça ficará melhor com mais uma alteração.

Suponho que se passássemos da minha opinião para o que tem sido opinado publicamente, a todos os níveis possíveis e impensáveis da opinião publicada, tratar-se-ia de uma situação ingerível, não só pela extensão do opinado, pelo carácter circunstancial de muito do afirmado e pela impossibilidade de se encontrar um ponto de convergência entre tudo quanto tem sido expresso.

Para além disso, tendo em mente que o Governo ainda em funções nomeou uma comissão incumbida da revisão do Código de Processo Penal, entretanto suspensa, à qual fixou um prazo de um ano, repito um ano, para entrega de uma proposta, fica em dúvida quanto a estarmos, no espírito de alguns responsáveis, ante uma reforma urgente ou algo a pensar-se para um futuro mais diferido e até lá digerido com vagar.

Estive na Comissão de que emergiu o que viria a ser a versão inicial do diploma e sou o primeiro a reconhecer que a situação sobre a qual se pensou o que viria era a ser o Código então era bem diversa da que hoje nos é dado viver, sendo a actual muito mais complexa, por um lado, diferenciada, por outro.

E reconheço também que algumas das soluções então propostas eram bem-intencionadas, mas irrealistas face aos meios disponíveis e à cultura ainda hoje reinante no sistema de justiça. Mas para ser honesto com a verdade, houve também algum atavismo a barrar o caminho ao que então surgiu como inovador. O que tudo originou, como era expectável, uma jurisprudência reactiva, a qual tornou, algumas das previsões do Código em outra realidade diversa da pretendida.

Entrando no tema, suscitam-se previamente dois tópicos.

O primeiro consiste em saber se o problema que leva, uma vez mais, à necessidade de se pensar na revisão do Código de Processo Penal é o da lei, ou se, afinal, apenas o modo como essa lei é aplicada: é que, face a certas mentalidades e modos de entender, ora superlativamente imaginativas ou prudentes em excesso, não haverá lei que resista.

O outro consubstancia-se em perguntar se não estaremos, uma vez mais, a pensar numa reforma legislativa ditada por razões circunstanciais, respeitantes ao momento, mas não de natureza estrutural, ou seja, a legislar-se sobre o polémico, desconsiderando a relevância do que não tem presença no espaço mediático, nem voz dos seus ali múltiplos actores.

[posto isto, entrarei no tema]

Há várias formas de encarar o que está em causa, logo pela ponderação dos possíveis problemas vistos pelo ângulo dos sujeitos processuais intervenientes no processo criminal.

Vindo as reflexões da parte de um advogado, como tenho sido durante toda a minha vida profissional desde que iniciei o estágio em 1972, há o risco de se considerar esta minha como uma avaliação interesseira, porque ao serviço de uma lógica desproporcionadamente favorável aos meios de defesa quando, na verdade, os advogados, e nisso eu incluído, são amiúde advogados de vítimas de crimes, colaboradores, pois, da acusação pública, assim essa colaboração seja por ela aceite, o que nem sempre sucede: mas isso decorre da acrimónia em que se passou a viver nas últimas dezenas de anos no âmbito da justiça criminal.

Encarado, pois, o tema, na perspectiva dos sujeitos do processo, um dos tópicos essenciais tem a ver com a questão do Ministério Público e não se veja no que direi a seguir qualquer intencionalidade adversa a tal relevante e necessária entidade.

É, desde logo, o Ministério que tem o poder de definir o objecto do processo. Os juízes julgam aquilo que o Ministério Público lhes submete como sendo o tema a sujeitar a julgamento. Nesta repartição de funções, que a regra do acusatório pressupõe, o poder material mais significativo cabe, por isso, a quem define o que deve ser julgado e a quem tem o poder de decidir o que não será submetido a julgamento.

Daí que se encontrem no quotidiano da nossa vida jurídica, situações de agraciamento de quem seria lógico que fosse comparticipante, mas é excluído de responsabilização e tornado testemunha; daí que nos confrontemos com certidões para averiguação autónoma cujo destino depois se ignora.

Mas não apenas isto. Pela denominada correcionalização, é permitido ao Ministério Público, acionando o artigo 16º do Código de Processo Penal, o poder de determinar que haja casos, cuja competência natural caberia a tribunais colectivos, mas que passem a integrar a competência de juízes singulares, o que logo determina o limite da medida da pena aplicável, intromissão esta no âmago dos poderes intrinsecamente jurisdicionais, que o Tribunal Constitucional, também aqui, tem caucionado, apesar de significar que a espécie de tribunal normalmente competente fique desaforado em favor do tipo de tribunal que o Ministério escolher.

Dotado daquele poder de conformação do âmbito material e jurídico do processo criminal concreto, está o Ministério Público hoje dotado de poderes superavitários na fase pré-acusatória.

Um dos mais expressivos desses poderes tem a ver com a gestão temporal dos inquéritos, o que sucede numa dupla dimensão, a absoluta, respeitante à duração das averiguações e a relativa, esta atinente ao surgimento dos momentos cruciais em que os inquéritos se tornam notícia.

A primeira vertente é a da indefinição do prazo inquérito e a da indefinição formal do estatuto do  investigado, com a concomitante ablação de direitos àquele cuja responsabilização está em causa, o que ocorre por várias formas.

Logo uma, porque, só começando a correr tal prazo de inquérito a partir do momento em que as averiguações correm cotra pessoa determinada, é possível diferir no tempo a evidência de tal circunstância, ainda quando os autos de busca e apreensão já demonstrem o contrário, isto é que o buscado é simultaneamente o investigado.

Além disso, porquanto é igualmente permitido diferimento quanto ao momento da constituição como arguido, ainda que as averiguações decorram desde há muito e o sentido das mesmas contra pessoa determinada seja claro.

É facto também que, quando o visado requeira, nos termos da lei, a sua constituição como arguido, o Ministério não poucas vezes limita-se a tal acto formal de atribuição estatutária, mas não procede a qualquer tomada de declarações que permita a possibilidade de defesa, o que é uma forma de sofismar a garantia inerente à arguição.

A tudo isto se juntam as denominadas averiguações preventivas, hoje na ordem do dia, cujo conteúdo material não encontra definição processual penal clara, sob a alegação de tratar-se de matéria de cunho administrativo, quando do que se trata, no que a esta qualificação jurídica respeita, é de uma clássica manipulação de etiquetas, orientada a dar foros de legitimação a um expediente que se traduz num quase-inquérito à margem das exigências legais, fluídas sejam e são, que impendem sobre os inquéritos. Sei que há diligências formais que não são nele permitidas, mas esse é o tema, aquilo que então decorre a coberto com a informalidade.

E, enfim, é poder relevante do Ministério Público a conformação da dimensão do processo, pela formação de blocos temáticos que, em pura lógica, poderiam ser autonomizáveis, o que gera a possibilidade de formação de megaprocessos que os juízes não podem oficiosamente cindir, mesmo quando o efeito dessa acumulação temática é a ingovernabilidade, a lesão da pretensão punitiva do Estado, a redução dos meios de defesa e a geração de uma justiça de classe, pois só os muito abonados financeiramente podem suportar o custo do patrocínio de procedimentos que se arrastam por meses quando não anos.

E que se trata de cindibilidade possível fica demonstrado quando, ante o risco de prescrição processual surge, por vezes já em fase de julgamento.

Sendo esta a situação, a circunstância de a jurisprudência ter tornado como moderadores, ou orientadores, ou o que seja, enfim não injuntivos, os prazos de inquérito, mau grado a fórmula da lei que os qualifica como sendo prazos máximos, que na epígrafe do artigo 276º do Código quer, reiteradamente no n.º 1 do respectivo preceito, é apenas mais um reforço, agora coberto pela jurisprudência, do sistema de superavit de meios conferidos ao Ministério Público.

Coteje-se com o que era o sistema do Código de Processo Penal da Ditadura Nacional, aprovado em 1929, pelo qual, esgotado prazo da averiguação pré-acusatória, então denominada instrução preparatória, o processo apenas poderia correr em sede de averiguação, sim, mas já sob a forma contraditória e o Ministério Público, a não arquivar os autos, teria de se comprometer com uma acusação provisória; compare-se e conclua-se quanto existe hoje de redução drástica das garantias das pessoas.

Há, porém, mais a dizer, como a propósito do segredo de justiça.

São hoje claras três circunstâncias.

A primeira, é o que segredo de justiça se tornou uma aparência, ante a impunidade de facto da respectiva violação, quando está decretado e deveria ser feito cumprir, sendo apenas um segredo contra o investigado.

A segunda, é que é possível a sua extensão durante anos, porque os meios processuais que legitimam que o mesmo ceda em favor da cognoscibilidade orientada à defesa processual, pressupõe o estatuto de arguido e é possível sofismar a sua concessão, donde aquela permissão de consulta dos autos.

A terceira, porque é possível, pela técnica da autuação, iludir a efectiva percepção dos autos, assim a prova por declarações e testemunhal seja registada em áudios ou vídeos não transcritos e cuja acessibilidade ou não seja facultada, ou seja, dificultada, a somar à possibilidade de o essencial da prova ser arquivada em apensos e anexos e não nos volumes principais e naqueles de forma tal que a sua leitura se torna desencorajadora.

Recuperemos, então a segunda vertente da gestão temporal relativa dos inquéritos, naquilo em que isso se traduza na circunstância de certos actos processuais relevantes, nomeadamente as detenções, as buscas e apreensões, a dedução das acusações, os arquivamentos, surgirem em certos momentos convergentes com determinados factos da vida pública e até política.

Todos temos ouvido que se trata de meras coincidências e que se trata de malévola especulação pensar ao contrário. Sobre isso limito-me a dizer: cada um acredite no que quiser. Yó tambien no créo en la brujas.

Mas há ainda mais.

Dotado do poder legal de delimitar o objecto do processo, pelo que acusa e pelo que não é acusado, o Ministério Público não está adstrito a fundamentar a acusação com indicação expressa, em relação a cada um dos factos que integram tal libelo, qual a prova indiciária que recolheu e que legitima cada uma das respectivas imputações de facto.

É assim possível acusar por associação criminosa, comparticipação, actuação em decorrência de um plano, prática de actos em comunhão de esforços, sem que se mencione qual o fundamento probatório indiciário para tal imputação. E não é infrequente que supostos os associados, alegados comparticipantes e presuntivos actores em mão comum, se conheçam no julgamento.

Há, para além disso e permito-me supor que este é um tema de primeira grandeza, a tendência, que tem vindo a desenhar-se, no sentido de ser o Ministério Público, mais do que o fiscal, afinal, o próprio julgador da invalidade dos seus actos.

Tentou-se levar esse poder à letra da lei, quando da reforma do Código em 1995, alterando o preceito do artigo 122º, n.º 3 do Código de Processo Penal que expressamente prevê a judicialização da competência como decorrência da natureza intrinsecamente jurisdicional do acto.

Não se tendo conseguido então tal desiderato, eis na academia e na jurisprudência a patrocinar-se agora a regra segundo a qual a competência para aferir da invalidade dos actos processuais cabe, afinal, às autoridades judiciárias, nisso incluindo, para além do juiz, o Ministério Público, o qual fica assim investido do poder soberano de decidir, em exclusividade e com subtração do judiciário, da quando suscitada invalidade dos actos que pratica e, eis o ponto, sem recurso.

Ainda a propósito do Ministério Público, mas aqui já com cobertura judicial, deixo dois apontamentos: um, a perguntar-me como é possível que um meio que a lei quis tornar excepcional de investigação, porquanto gravemente intrusivo na esfera pessoal e íntima das pessoas, como é o caso das intercepções telefónicas se tenha tornado em método tão generalizado e cómodo de averiguação criminal; outro, a perguntar-me também como é possível considerar que detêm a isenção inerente a uma prova pericial que seja digna desse nome e que, aliás, se impõe, por lei, à convicção do juiz, os pareceres técnicos dos organismos que trabalham sob a égide directa do Ministério Público e da Polícia Judiciária, seja o Núcleo de Apoio Técnico ou o Gabinete de Recuperação de Activos.

Basta quanto ao Ministério Público e já é bastante.

Passemos, pois, agora, à questão do, chamemos-lhe assim, o sujeito passivo do crime.

É hoje um tema ambíguo o da qualificação estatutária que cabe a esta figura no quadro das categorias processuais de assistente, lesado e vítima.

Várias são as questões problemáticas de que enunciaremos apenas três, para não alongar a exposição.

A primeira, é a circunstância de a causa de pedir que fundamenta o pedido ressarcitório dos lesados – e apenas este tipo de pedido indemnizatório é admitido no processo penal – estar fundado na acusação e esta poder ser alterada ante a fase de instrução, sem que a lei preveja articulado superveniente a dar a possibilidade de ajustamento factual ante a nova situação que se assim se configura.

A segunda, é o facto de o estatuto de assistente, cujo perfil essencial pressupõe uma ligação aos valores jurídicos tutelados pela norma incriminatória, ser concedido, por permissão da lei em relação a um catálogo vasto de crimes,  a qualquer indiscriminada pessoa, sem legitimação substancial com o crime, o que deu oportunidade aos jornalistas de serem assim admitidos a ter acesso aos processos, como assistentes, não para colaborarem com a acusação, o que contrariaria aliás o seu código deontológico, mas poderem auferir material noticioso ao serviço dos órgãos de comunicação social que servem, o que desvirtua a finalidade do estatuto de assistente.

A terceira, porque, ao ter-se viabilizado que o instituto processual criminal de vítima possa ser estendido não apenas a quem tenha sofrido lesão a bens pessoais, mas também relativamente a pessoas lesadas patrimonialmente, geraram-se dois efeitos: um acréscimo de meios de acção processual que, a serem cumpridos no processo penal, o tornam em certos casos, ingeríveis, por outro a possibilidade de, afastada a matéria cível do âmbito do procedimento penal, de modo a salvaguardar a eficácia do mesmo, tal entrar em contradição com a manutenção no processo dos assistentes, que são sujeitos processuais com natureza criminal, face à exclusão das vítimas que têm estatuto com igual natureza, o que, reconheço, decorre da indefinição legal a tal propósito.

Enfim, os suspeitos, arguidos e seus defensores.

Tornou-se um clássico argumentar que há no actual Código e na prática corrente dos tribunais excesso de garantismo, porquanto os meios processuais concedidos aos arguidos são excessivos até por contrapartida aos que a lei prevê para os que são os sujeitos passivos do crime que esteja em causa.

E, como adjuvante do argumento, proclama-se que esse excesso é privativo dos que têm meios pecuniários para custear advogados onerosos, ou seja, terem o privilégio da justiça dos ricos.

Indo por partes, começando por esta vertente.

Importa considerar, preliminarmente, que há no argumento, salvo o devido respeito, confusão entre o que são os meios legais e o excesso de uso dos meios processuais, cuja disciplina se impõe até porque, ao limite, atinge a natureza pública da advocacia,a enquanto colaboradora da justiça, e põe em causa a finalidade precípua do processo criminal.

Para além disso, urge relembrar que é o intencional, quando não necessário, agigantamento processual, pela organização de megaprocessos, que determina essa justiça em que a defesa efectiva só é permitida aos bafejados pela fortuna e é quanto a esse tipo de processos que a questão do abuso processual tem sido configurado como tema.

Mas, numa outra vertente do problema, a questão essencial de hoje tem a ver com a supressão efectiva da defesa pelo ataque ao património dos investigados criminalmente.

Todo um vasto acervo de meios são mobilizados para isso e reina actualmente uma cultura processual da qual decorre que a privação patrimonial é, no processual penal, de gravidade que, passe o excesso argumentativo, começa a equiparar-se à privação da liberdade: é a suspensão das operações bancárias, ao limite durante anos, no quadro da prevenção do branqueamento, são as apreensões, o arresto, no máximo o confisco, para já não referir as cauções milionárias, tudo a privar quem é sujeito a tais medidas de meios materiais para uma defesa efectiva.

Constatar que nos encontramos hoje, sob a égide da democracia, perante a possibilidade de confisco de bens, termo usado sem caução, quando tal meio era expressamente proibido pela Constituição do Estado Novo de 1933, dá que pensar a quem quiser fazê-lo e não se exima ao tema com o confortável argumento de que é, apenas, uma mera questão vocabular do que se trata quando a lei hoje volta a falar em confisco.

A juntar a isto, há a presunção penal da origem criminosa decorrente do denominado património incongruente, a qual não só onera os arguidos com o ónus da prova em matéria criminal, como se impõe ao próprio julgador, para efeitos de perda alargada, assim o arguido não consiga a ilisão do presumido, e tudo isso o Tribunal Constitucional igualmente viabilizou, apesar de estar em causa, não apenas o princípio constitucional da presunção de inocência em matéria penal, como a plenitude da jurisdição que fica assim limitada ante a presunção legal estabelecida.

E não se diga que estamos ante um instituto de natureza não penal, ou quando muito de natureza mista, porque esse exercício de qualificação jurídica forçada colide com o enunciado da lei, se não com a finalidade do instituto, sendo apenas formulação pretensamente salvífica da sua violência face ao espírito das garantias constitucionais.

Aqui chegados, fará sentido que se configure o tema na sua equilibrada geometria: será que a valência mais relevante do tópico que estou a equacionar, é o do excesso de meios processuais para uns, ou antes o da falta de meios materiais para acesso à justiça para muitos, os sempre pobres e aqueles que a justiça, entretanto, empobreceu?

É que para o primeiro, o do abuso processual por superavit de meios de fortuna, há meios de disciplina processual, assim se pretenda a sua aplicação; quanto ao segundo, o da privação processual, por défice de meios económicos ditados pelo próprio processual, é que tem de ponderar remédio, para que justiça seja feita.

É que as liberdades e garantias, que muitos têm por burguesas porque formais, valem nada quando o acesso à justiça for dizimado pela ablação de meios pela própria justiça.

Há, evidentemente, algo a dizer no que respeita à advocacia, e muito, e não me eximo a alguns apontamentos.

Antes de mais, que não há uma só advocacia, mas várias, uma das quais a que se tornou a indústria forense, numa dupla vertente: logo aquela, de matriz empresarial e de estrutura societária, cujo objecto social é a geração de horas facturáveis, o que implica um certo modo de ser e agir ante um mercado de concorrência cada vez mais agressiva; para além dessa, a que é o negócio, hoje já firmado, de financiamento da litigação, por formas sofisticadas que vão para além da aquisição de situações litigiosas porque incluindo sistemas que não se diferenciam da quota litis.

A maximização da intervenção processual como meio de geração de proveitos encontra no primeiro caso a melhor expressão, enquanto no segundo modelo, do que se trata é da gestão do custo benefício entre o investimento financeiro feito na litigação patrocinada e o tempo de retorno do capital investido.

No meio disto, a advocacia de base individual e numa lógica do pequeno escritório, aquilo a que hoje se designa, talvez como forma de vencer o pudor do muito pequeno ante o infinitamente grande, a boutique de advocacia, se não tem já os dias contados, passa por dificuldades de sobrevivência, ante a monopolização do sector forense, o incremento dos custos de estrutura, a complexidade do Direito e o marketing agressivo que torna os advogados comentadores e a comunicação fonte de publicidade.

Ante isto, a diferença substancial a notar, no que à advocacia respeita, é que, ante a diversidade da sua organização e a lógica diferenciado de actuação de cada um destes dois modelos, o industrial face aos demais, não é possível gerar uma lei que se generalize e reconstitua um padrão comum de comportamento.

A questão que se me afigura essencial quanto à advocacia forense tem a ver com a formação, na dupla vertente, a técnica e a deontológica, de modo a habilitar a uma actuação processual que possa ser a necessária face aos interesses que são confiados ao advogado, mas útil no processo para o trabalho de quem tenha dele de assumir poderes decisórios e espera da advocacia a indispensável colaboração.

Aqui chegados, entro no tema dos meios processuais, sua proporcionalidade ou excesso.

Em primeira linha, reitero que não há que confundir a dimensão dos meios legalmente previstos com o abuso desses meios, forma paradigmático do abuso de Direito.

E suponho que a proposta de medidas sancionatórias consignada no relatório sobre megaprocessos, oriunda do Conselho Superior da Magistratura, não visaria a sua aplicação aos mandatários, sim aos seus representados, apenas porque o sancionamento da advocacia cabe, em jurisdição disciplinar própria, à Ordem dos Advogados.

Para além disso, faço questão de perguntar se, ao ter em vista uma avaliação do excesso de meios processuais pelos arguidos – e é assim que o problema tem sido considerado – não poderíamos colocar em agenda o mesmo tópico, como matéria passível de reflexão, relativamente a outros sujeitos processuais. Deixemos, porém, o tema nos moldes em que ele tem sido configurado, pois já coloquei nesta exposição acinte que baste.

Centrando o tema em sede do que possa ser a sua previsão legal no quadro de um Direito a constituir, parametrizarei o mesmo numa dupla dimensão, a que releve para a celeridade processual e o que decorra para uma melhor justiça.

A celeridade corre hoje o risco de, em termos de justiça, se tornar um valor absoluto, quando a sua natureza é, por essência relativa.

Claro que justiça tardia não é justiça, nem no que se refere à regeneração do condenado, que não se reconhecerá na culpa que terá de expiar, nem quanto ao exemplo para a comunidade, nem quanto à restituição da paz a quem for disso merecedor pela absolvição.

Mas que a justiça precisa de tempo suficiente de reflexão e maturação e o acto de julgar não pode obedecer a critérios cronométricos de uma linha de montagem, isso parece-me certo.
Por isso a expressão «despachar processos» sempre me trouxe recônditos semânticos indesejáveis; daí que a avaliação de magistrados em função da produtividade sempre me pareceu redutor pois há muitas formas de se ser processualmente desembaraçado.

Aliás, a mera lembrança de que a estrutura do Código de Processo Penal de 1987 foi delineada em nome precisamente da celeridade, como consta da Lei de Autorização Legislativa que o viabilizou e que hoje nos encontramos com processos criminais iniciados em 2011 e ainda sem acusação deduzida, é motivo para reflexão sobre a ironia das pias intenções então acalentadas.

Não quer isto dizer que não se devam consagrar medidas pelas quais a maior tempestividade da resposta do sistema de justiça seja alcançada e, sobretudo, que seja suprimido o esforço inútil.

E não me parece que tudo se alcance através das grandes reformas da lei, pois, por vezes, são questões de aparência secundária e de relevo mínimo as que relevam.

Logo a começar, a técnica de autuação, que torna a consulta de um processo, seja no formato papel, seja digitalizado, uma esforçada fadiga.

A lógica sequencial, pela qual se vão acumulando nos ditos autos, diligências de prova ao lado de burocracia procedimental, logo de seguida documentos, documentos que são, entretanto, extraídos para apensos e anexos, isto sem pensar no que ali surge repetido quer na sequência quer na organização dos volumes e tudo sem índices que facilitem a consulta, é a melhor evidência do que algo está mal neste modo de organizar os processos a pretender que os mesmos sejam transparentes e não labirintos opacos.

E quando se passa para o mundo da desmaterialização, a complicação aumenta: são PDF’s que não são pesquisáveis, vários documentos, por vezes dezenas e mais, digitalizados sequencialmente, sem que haja índice ou marcadores que possibilitem saber onde termina um e começa outro, enfim, é a insuficiência de meios computacionais capazes, a ausência até, em certos serviços judiciários, de uma simples digitalizadora, em suma, proclamações políticas de riqueza em casa de judiciária pobreza.

Relevante também o acto de copista, hoje facilitado pelo copy paste que se exige ao juiz, a ter de consignar as peças processuais sobre as quais decide, mormente no caso dos acórdãos, a fazer com que, para ser breve e útil, a leitura dos arestos tenha de ser feita, à oriental, do fim para o princípio.

Poderia continuar.

Quanto à duração do inquérito já o referi atrás, a propósito do Ministério Público: enquanto se continuar a conviver com a noção de que são prazos moderadores, só porque o legislador que determinou serem máximos não fixou a consequência pelo desvalor da violação dessa máxima duração, não há solução possível. Mais: aceitar acriticamente tal ponto de vista, é interiorizar a ideia de que um magistrado só cumpre a lei, neste caso a lei que determina que o inquérito tenha prazos máximos, quando estiver cominada uma sanção pelo incumprimento, o que, diga-se, não é abonatório para quem se sujeite a dar como válido um tal entendimento.

No que respeita à acusação, assim, como já aflorei, assim se exigisse que, em relação a cada asserção de facto, se mencionasse necessariamente o local nos autos onde se encontra a prova indiciária que o fundamenta, assim se ganharia em tempo para efeitos da defesa e do julgamento, para além, e isto é crucial, se de prevenirem acusações temerárias.

E já agora digo o mesmo em relação à contestação, para que se vençam os resquícios da velha escola segundo a qual, entre comentários, apartes e factos de recorte secundário, nela surjam os factos que são relevantes ante a norma incriminadora que estiver em causa, sobre os quais cabe ao juiz decidir.

Referindo ainda o que penso a propósito da subsistência da fase de instrução, antecipo apenas que se ganha tempo e poupam-se meios se as decisões instrutórias forem notificadas e não lidas em sessão, já que a experiência demonstra que é rara a presença dos arguidos, e por isso, o efeito admoestatório que teriam perde sentido.

Em sede de julgamento tudo decorre da articulação de dois vectores: a colaboração dos sujeitos processuais e o poder de direcção e disciplina de quem presida a uma tal fase, pois não parece haver actos de produção de prova que sejam hoje irrelevantes, nem incidentes que ponham em causa a normal tramitação da fase, dado o efeito não suspensivo de todos eles, mesmo o da recusa de juiz face aos actos urgentes de prática necessária.

Termino esta minha intervenção, com menção a dois assuntos que têm sido o foco de incidência mais intenso da actual discussão sobre o processo penal: a subsistência da instrução e a restrição dos recursos.

Avaliando a situação da fase de instrução, está hoje disseminada a ideia da sua quase inutilidade e do risco que nela se contém, isso somado ao prognóstico de que tal fase está condenada a morrer, não de morte natural como a instrução contraditória da legislação processual penal anterior a 1987, sim, de morte assistida pelo legislador que a esvaziou de significado e alcance, para o que convergiu a interpretação redutora de certa jurisprudência.

Inutilidade que a estatística demonstra face à quase expectável confirmação judicial das acusações e dos arquivamentos, nomeadamente quando o objecto suscitado nesta fase é a discussão da prova indiciária exigível para a sujeição do caso a julgamento: in dubio contra reo é, como se constata o princípio reitor da avaliação indiciária em sede de instrução.

Risco porquanto, no que às instruções requeridas por arguidos, há nisso o perigo de, na ânsia de se evitar a sujeição a julgamento, esgotar-se o argumentário de defesa e, ante a decisão instrutória adversa ficar o efeito psicológico do tudo dito e tudo visto, reduzindo-se o âmbito do defensável, salvo algum esforço de imaginação no recolocar do problema.

Uma instrução, como é a que resulta da lei actual, em que nenhum acto do juiz, mesmo os de produção prova, é passível de recurso, em que a decisão instrutória que se conforme com acusação do Ministério Público é premiada com a irrecorribilidade, é algo que está reduzida a muito pouco, pelo que não admira o seu funesto desfecho.

Claro que subsistem as questões processuais que impliquem, porque prévias, um juízo sobre as condições de procebilidade, caso das invalidades, como, por exemplo, a prescrição, tudo o que implique, sem juízo de mérito, a inviabilidade da responsabilização.

E, se bem que, quanto a essas questões, é possível ao juiz de julgamento conhecê-las no despacho preliminar subsequente à distribuição do processo, certo é que a decisão de algumas pode exigir alguma prova, incompatível com o início do julgamento, embora não com a sua produção como prova antecipada antes daquela outra que é necessária para a aferição do mérito da causa.

Surge daí a perspectiva, que vem sendo patrocinada por alguns, de que a instrução se reduza à mera aferição dessas questões de natureza processual condicionantes do conhecimento do mérito da causa.

Ora o problema actual da instrução, no que à sua subsistência respeita, é a Constituição, que mantém a exigência de uma tal fase, se bem que aquele conceito foi ali colocado, logo no texto inicial da Lei Fundamental, visando, à data, a lógica da necessária judicialização da investigação pré-acusatória, o que gerou, entretanto, uma interpretação actualista para que o preceito desse cobertura à conformação da instrução como fase subsequente à acusação ou arquivamento.

E, por isso, salvo havendo supressão dessa imposição constitucional, o problema consiste em saber se a Constituição da República, na sua fórmula actual, suporta um esvaziamento da fase de instrutória, amputada daquilo que por ela seja possível conhecer, seja a prognose sobre viabilidade probatória de uma acusação quando sujeita a julgamento e, sobretudo, o controlo judicial dos arquivamentos.

É que, é quanto aos arquivamentos que a instrução judicial ganha a sua finalidade inderrogável, pois, de outro modo, a não ser caso que por força da acusação do assistente seja levado a juízo de julgamento, estar-se-á ante um poder de agraciamento por decisão do Ministério Público, a juntar ao que já se referiu quando nem arquivamento chega sequer a existir.

Há, enfim, os recursos. E sobre isto gostaria de deixar alguns pontos de vista.

Em primeiro lugar, urge aclarar se o conhecimento da matéria de facto, em sede de recurso, é algo desejado, ou se trata de uma situação que se está tornar excepção, mobilizando-se, como se mobilizam, pretextos vários para decidir que as conclusões da motivação do recurso raras vezes estão correctas face às exigências formais do Código de Processo Penal, nomeadamente no que respeita à indicação da prova que, ante o recurso, legitima conclusão material diversa da recorrida.

Ainda quanto à mesma matéria, importa clarificar definitivamente se o justo entendimento no sentido de um adequado reexame dessa matéria factual, passa apenas por verificar apenas se houve violação de regras legais formais quanto à produção da prova, nomeadamente erro notório, ou se é congruente como argumento para rechaçar recursos, decidir-se que o recorrente o que pretende é, afinal e apenas, contrapor a sua visão da prova contra aquela que seguiu o tribunal recorrido, e, precisamente por isso de se tratar de pretender argumentar com uma mera opinião pessoal, o recurso não pode ser sequer recebido.

É que, pergunto-me se a verdadeira essência do recurso não é, essencialmente, um contraponto que se apresenta ao tribunal de recurso entre um critério de julgamento da prova posto em crise pela impugnação, e aquilo que deveria ter sido, segundo o recorrente, o critério de julgamento dessa mesma prova.

E se isso é assim, e é assim permitido, quanto à questão de Direito, em que o recorrente expõe a sua interpretação da Lei face à seguida pela decisão de que recorre, como é aceitável, sem quebra de lógica, que se possa conviver com a ideia de estar vedado suscitar-se, ao recorrer quanto a matéria de facto, a avaliação que o recorrente faz da aferição da prova dos factos, em contraponto com aquela ponderação que foi expressa pelo tribunal recorrido, sendo isso, afinal, legítimo para que o foro de recurso opte por uma das avaliações probatórias, ou exprima a sua própria visão sobre o provado e o não provado.

Para além disso, importa enfrentar a questão de saber se existe um grau de segurança suficiente quanto ao veredicto das duas instâncias para que se possa tornar ainda mais excepcional o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, elevando inclusivamente a dosimetria penal que torne tal recurso admissível.

A questão não é de ofensa quanto ao saber, probidade e experiência da magistratura judicial cujas decisões são postas em recurso, sim de ajustar um critério de congruência porque, ou bem que há o conforto de se supor que o Centro de Estudos Judiciários entrega actualmente  a judicatura a juristas com classificação cuja suficiência seja tida por aceitável e que a experiência prática supra qualquer limitação ou, a haver dúvida, que não se arrisque esse passo da restrição recursiva, pois isso é pôr em risco a liberdade e a fazenda dos cidadãos.

A essência dos recursos é a prevenção do erro, a restrição ao direito a recorrer só é legítima quando a probabilidade de erro se situar no domínio do residual.

É, por isso, que não há soluções de Direito Comparado que se imponham: cada país temo seu sistema de justiça, o seu corpo judiciário, e o modo de funcionamento da sua justiça pelo que o reexame do julgado em sucessivas instâncias, tem de decorrer de aferições casuísticas a nível nacional e não de alinhamentos entre o que se passa a nível de geografias cuja cultura e modo de ser nada têm a ver com o que se passa entre nós.

E sobretudo que esse passo de cerceamento recursivo não seja dado apenas devido ao excesso de recursos que assim importaria morigerar, tudo se reduzindo à estatística, à produtividade, à taylorização.

Mais ainda: ante a divergência de entendimentos das instâncias de recurso até sobre uma mesma questão de Direito, visto o facto de até a própria jurisprudência deste Supremo Tribunal não ser acatada nem pelos tribunais dos dois primeiros graus de jurisdição, nem pelas próprias secções do Supremo, fica em aberto a questão de saber se deveremos barrar ainda mais a via de recurso.

É que há limites que é a democracia quem o exige. Estou isento da suspeita de ser um saudosista do antigo regime político que nos governou até ao dia 25 de Abril. Mas uma coisa é certa: no domínio do Código de Processo Penal que foi aprovado pela Ditadura Nacional em 1929, até do recurso da pronúncia era cabível até ao Supremo Tribunal de Justiça e com efeito suspensivo. Hoje, sob a bandeira do Estado dito de Direito Democrático só há recurso quando o juiz não acata na pronúncia a acusação do Ministério Público.

No que se refere ao efeito suspensivo de recursos para o Tribunal Constitucional, já existe lei aplicável a determinar a possibilidade de fazer cessar tal efeito, a requerimento do Ministério Público. Ao pretender-se que aquilo que é uma situação a aferir casuisticamente, ponderando a proporcionalidade do que esteja em causa, passe a ser regra geral obrigatória, está a criar-se uma situação, que, percebo, é cómoda, para que não quiser assumir o encargo de decidir, mas é fonte de desconsideração ante valores de justiça e de eficácia processual que têm de ser ponderados.

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Terminei.

Fica, pois, este meu contributo à vossa consideração. É o que penso e o que digo. Não assinei nenhum manifesto, não integro hoje órgão de poder, nem sou candidato ao que seja. O que afirmo, vale o que valer a minha opinião.

Não se veja nesta minha intervenção, nem a arrogância de quem se julga possuidor da revelação, nem o verbo de quem não está livre de culpa; sou dos que diariamente se angustia com a imperfeição própria, a insufiência.

E não se veja na menção crítica que faço a estas realidades que sei serem inconvenientes, um juízo de generalização que menospreze todos aqueles que, cada um no lugar que lhes cabe na Justiça, fazem o seu melhor, com espírito de abnegação, sacrifício, honradez e respeito pelos outros, para que justiça seja feita. O que coloco em agenda não são pessoas, nem profissões, sim o sistema processual que a todos nos obriga e que à jurisprudência dá margem de interpretação para que possa ser afeiçoado à luz de princípios fundamentais.

As soluções, para as quais todos construtivamente devemos contribuir, decorrem do que expus.

Termino, agora enfim, com uma reflexão de cunho ético: agora que estamos de novo em sede de revisão das leis do processo criminal [e se disso falo é porque é esse a propósito que me trouxe aqui], que cada um dos que tiver uma palavra a dizer quanto à matéria, legisladores, magistrados, advogados, juristas em geral pense nesta máxima que vem no Antigo Testamento [Livro de Tobias, 4:15]: «aquilo que não queres para ti, não o faças aos outros».

A ser isto pensamento e critério de acção, estaremos a contribuir para um processo criminal mais justo.

É que ninguém está livre de clamar um dia, para si ou para os seus, pelo braço do socorro que ajudou a decepar.

Tenho dito.

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