Regresso com um breve excerto da intervenção que tive, num evento que ocorreu no passado dia 19, na Casa do Juiz, em Coimbra, de rememoração da revista “Fronteira” que se publicou entre 1978 e 1981 e na qual tive intervenção.
«Recordar a revista Fronteira é rememorar um tempo situado e diria sitiado.
Publicação trimestral pluridisciplinar, a revista Fronteira surgiu no panorama do periodismo jurídico português em Janeiro de 1978 e findaria em Outubro de 1981, depois de 16 números publicados, na forma de cadernos, agregados em edição geminada os números 10-11 e 13-14.
A Direcção vinha assegurada por Armando Sá Coimbra, juiz e romancista, cuja primeira obra ficcional, intitulado Teia, foi prefaciada por Óscar Lopes, modelo de uma vida jurídica de vertente humanista, hoje tornada hipótese irrealizável face à burocratização das mentalidades, a vida forense tornada tecnocracia, a advocacia indústria, a justiça avaliada pela estatística, o reino da quantidade, a aritmética do mercado dos conflitos, em breve o automatismo do processo decisional, afinal, o culminar da desumanização pela robotização.
Idos iam já os tempos do desmantelamento do aparelho político e jurídico do regime autoritário que nos governou até 1974, nascido da proclamada Revolução Nacional de 28 de Maio, constitucionalizado em modelo corporativo em 1933, como Estado Novo, e ajustado com a revisão constitucional de 1971 num sistema em que se tentava uma liberalização sem democracia e sem admissão de partidos.
Estava-se longe ainda da entronização de um novo sistema jurídico que desse arquitectura jurídica executável aos princípios que o Movimento das Forças Armadas havia gizado como bases políticas do novo regime e a que a Lei n.º 3/74, havia conferido força constitucional.
O novo Código Penal só surgiria em 1982, afinal fundado num modelo que havia sido finalizado em 1966, governando ainda Oliveira Salazar, o novo Código de Processo Penal só viria à luz em 1987.
Havia, porém, desde 1976 a Constituição da República Portuguesa e foi precisamente, ao assumi-la como [e cito] «linha de defesa e de combate: uma fronteira entre abril e as oposições a abril» que a revista que agora se celebra se situou no plano das ideias, congregando, como fez constar do seu estatuto editorial [e cito de novo] «pessoas de diversos quadrantes de opinião e de formação técnica vária, mas todos comungantes da mesma esperança no projecto social e político para que aponta a Constituição da República Portuguesa».
A publicação era resultado de uma Cooperativa Editorial Defesa da Constituição, a CODECO.
[…]Tive uma única intervenção nessa revista, no número editado em Julho de 1981, e confesso, por isso, sinto algum embaraço quando fui convidado para integrar este painel, fraca que é a minha legitimação para usar da palavra. Senti, porém, que não poderia tornar o embaraço em omissão.
Revisitando esse meu texto, ele traduz a preocupação fundamental à data, a problemática do juiz de instrução. Há nele uma defesa ainda da judicialização da investigação pré-acusatória, que ali sugiro fosse articulada com os poderes de promoção do Ministério Público no sentido de fazer actuar a averiguação judicial, isto a somar à necessária judicialização dos actos jurisdicionais que nessa fase houvesse que praticar. Fórmula compromissória, portanto.
Tema ainda hoje actual, aliás, por nele se conter a temática do núcleo de poder intra-processual, num primeiro registo, o da articulação do judicial com o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal e, num outro, o da equação entre a judicialização necessária da fase de julgamento e a judicialização eventual das fases anteriores, nomeadamente a pré-acusatória.
[…]Sendo este o contexto, senti-me, pois, em casa, ao ter sido um colaborador, tardio embora, da Fronteira, mau grado com essa insignificante migalha, e sinto-me de novo em casa ao rememorar esse tempo de que, impenitente, não me arrependo.
Entendo, é certo, agora que pude fazer, na Biblioteca do Centro de Estudos Judiciários, a revisão geral da totalidade da publicação, perdidos que estavam alguns números na minha errante biblioteca, vítima de vicissitudes da vida pessoal, que muitos dos seus colaboradores tinham à data uma maturidade e um grau de preparação muito superior ao que eu detinha, o que só honra o acolhimento que me foi dispensado.
De todos, e para que a discriminação não gere ofensa, cito o nome de Armando de Castro, figura de extraordinário enciclopedismo, de que perdi, a favor de mãos ingratas, os dez volumes sobre a Evolução Económica de Portugal dos Séculos XII a XV, e toda a sua escrita pioneira no domínio da epistemologia, mas conheci na primeira acção judicial, aliás cível, em que fui advogado em causa própria e tive o privilégio de receber, não só a sua sabedoria, mas a magnanimidade da sua pessoa para com então incipiente advogado que eu ensaiava ser.
Sinto, e de novo Armando de Castro serve como referencial da ideia, que um significativo número dos que integraram a Fronteira e nela verteram as suas reflexões eram militantes políticos, muitos em prol do “socialismo real”, alguns de longa data, pelo que a publicação, na parte em que se abria a algum pluralismo reformista, poderia ser então conotada com uma lógica de frentismo ideológico das forças de esquerda e é esse seguramente o seu denominador comum a quantos se agregaram em torno do seu ideário.
Está, aliás, presente, em muitos dos textos, essa declarada simpatia e militância e denota-se a mesma pelas fontes de saber de muitos dos seus artigos, um número significativo de matriz marxista, tudo caldeado com outras reflexões, com outras origens e diversas filiações.
Publicação que assumia um pensamento progressista, como era o vocábulo em uso à época, a Fronteira rejeitava sim, a mentalidade conservadora, porque, na área jurídica em que apresentou, do que se tratava era de transformar o mundo e não apenas de o interpretar, como decorre da lendária 11ª tese sobre Ludwig Feuerbach.
Mas o que a revista assumiu foi, independentemente da sua tarefa construtivista, ser uma publicação pautada pela sinceridade.
[…]Dir-me-ão, os que hoje me acompanham neste rememorar desses tempos idos, que tudo se passa num tempo irrepetível, num contexto de ingenuidade. Seja. Mas o que não posso deixar de pensar é que não são as respostas que os colaboradores da Fronteira deram aos problemas aquilo aqui que importa, sim o exemplo cívico ao terem colocado os problemas que suscitaram, e o desassombro com que os equacionaram.
Num mundo sofístico, em que a linguagem jurídica se torna insídia, o raciocínio jurídico legitimador do a priori decidido, em que sob a presunção de ciência, o Direito se oferece como cabalística labiríntica de resultados incertos, quase fruto de oráculos caprichosos, é tempo de rever esse ontem.»