Soube que morreu com a belíssima idade de 93 anos.
Conheci-o quando em 1974 assinou os papéis que me permitiram iniciar o meu estágio na advocacia, que efectuei mais sob a orientação do Dr. Francisco Salgado Zenha.
Tantos anos volvidos, em 2001, procurei-o no seu escritório na Rua Anchieta, em Lisboa. É que eu tinha escrito, entretanto, um livro, a que chamara “O Espião Alemão em Goa”, hoje já em segunda edição, que relatava um episódio, vivido no domínio da guerra secreta, ocorrido no Estado Português da Índia, concretamente no porto de Mormugão. E surgira-me como melhor ideia a de que tivesse a gentileza de proceder à apresentação da obra, a efectivar-se no Palácio de Galveias.
Para tentar estabelecer a razão do pedido invoquei o ser ele natural do lugar dos acontecimentos e, como tal, haver como que uma ligação umbilical entre o relatado no livro e a terra da sua origem.
Com aquela fina elegância de trato que o caracterizava, ia-me ouvindo, sorridente e amável sem me interromper.
Até que, esgotado o meu argumentário, com um sorriso que o olhar iluminava, disse-me, para minha grande surpresa: «isso que você conta nessa sua obra eu vi com os meus próprios olhos.»
E acrescentou: era então um miúdo. E estavam acostados ao porto de Mormugão três navios alemães – eu sabia serem, ele já não lembrava, o Ehrenfels, o Drachenfels e o Braunfels – e um outro italiano – o Anfora – que ali aportaram com o início da Segunda Guerra. Estabelecera-se então uma amiga convivência entre os tripulantes e o pessoal de terra. Isso deu-lhe a conhecer muitos deles, ressalvadas as distâncias de nacionalidade e de língua. Um dia, porém, pela noite de Carnaval, os barcos largaram a arder.
«No seu livro», afirmaria na sessão pública que teve a gentileza de presidir, apresentando-me, «você diz que foi um inferno dantesco o que se viveu naquela noite». E virando-se para a amiga assistência acrescentou: «ele escreve que era dantesco porque viu nos documentos, eu sei que foi dantesco porque vi com os meus olhos».
Foi um momento ímpar em que as teias da vida se conjugaram na rede do improvável: nasci em Angola, vim para Viseu em 1962, dali para Lisboa onde me formei. Tentando um estágio na advocacia encontrei na sua pessoa, ele que nascera na Índia, e viera cursar Direito em Lisboa, o meu arrimo e apoio. Na média idade dei em “escritor” entre outras coisas daquele insólito tema. De todos os relatos históricos possíveis – obtido por horas em arquivos e a recolher testemunhos – surgiu-me aquele. O destino levou-me de novo ao seu encontro. O tempo circular confinou o espaço deste nosso pequeno mundo.
Ao saber da notícia, lembrei-me deste facto. Triste ocorrência para uma grata memória.
Partiu um grande Senhor, de uma grandeza e finura de espírito, uma inteligência requintada.
Discretíssimo, em lado algum se encontrava uma fotografia sua, ele que foi Presidente da Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados, candidato a Bastonário. Devo à gentileza de sua filha a que aqui publico.
Cultivou a discrição ao lado de uma coragem cívica interveniente. Não fez da exibição pessoal método nem meio.