A entrevista é apenas o ponto de partida para uma reflexão, a que segue.
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Mais do que uma prática está a ocorrer uma mudança de cultura jurídico-penal no Brasil. A novidade decorre do instituto da delação premiada, uma variante do nosso sistema dos ditos “arrependidos”. Se não erro a sugestão do sistema vai propagar-se além-fronteiras. Ver o seu traço geral aqui.
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Tal cultura é subsidiária da influência que o pensamento jurídico norte-americano exerce sobre uma nova geração de procuradores e juízes brasileiros. A sua génese tem também assentimento no Direito Italiano, nomeadamente na legislação anti-mafia.
Trata-se, no fundo, de uma transação processual penal, pela qual o arguido adquire vantagens em torno de declarações úteis.
Tal decorre de lei: Lei n.º 9807/99, Lei do Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) em seu art. 8º, parágrafo único; Lei do Crime Organizado (Lei 9.304/95) em seu art. 6º; o próprio Código Penal brasileiro quando trata do crime de Extorsão mediante seqüestro (art. 159, § 4º); Lei de Lavagem de Capitais (Lei 9.613/98) em seu art. 1º e 5º; Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei 9.807/99) nos arts. 13 e 14 e na Nova Lei Antitóxicos (Lei 10.409/2002) no art. 32,§ 2º estando consagrada na Lei n.º 12850, de 2 de Agosto de 2013 [ver aqui].
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O tema abre a porta a inúmeras questões. Sem pretende esgotar e apenas como convite à reflexão, eis algumas, sem sistemática:
Do ponto de vista da eficácia do sistema:
-» Qual a certeza quanto à veracidade do denunciado pelos delatores premiados? Qual a segurança jurídica de que não estarão a adquirir benefícios em troco de afirmações úteis para a tese dos investigadores?
-» Qual a garantia de que a linha de investigação criminal não fica comprometida pelas denúncias remuneradas com os benefícios processuais concedidos?
-» Qual a evidência de que o aumento exponencial de denunciados não vai gerar, em lógica inversa, o aumento igualmente exponencial de absolvidos, assim o delatado se não confirme em audiência?
-» Em que medida é que as penas aplicadas aos delatores, na aparência severas, para executadas em regime de permissiva tolerância, não expõe o sistema à aparência que é a porta aberta para a sua descredibilização?
Do ponto de vista da arquitectura do sistema:
-» Em que medida a delação premiada abre a porta ao colaboracionismo da defesa com a acusação, gerando, em primeira linha, defensores de actuação útil aos investigadores, ou, como efeito perverso, defensores sugeridos pela investigação, como os mais adequados ao suposto benefício a obter pela delação?
-» Até que ponto o sistema não coloca em crise a independência do sistema judicial, limitado pelos achados probatórios obtidos sob delação premiada?
-» Em que medida tal sistema, incrementando por sua natureza o protagonismo dos procuradores/advogados/negociadores não gera, como seu efeito mediático, o culto da personalidade em detrimento do espírito de corpo e de critérios de reserva e contenção, apanágios de uma justiça serena?
Do ponto de vista da moral do sistema:
-» Haverá limite ao envolvimento do Estado através da autoridade judiciária, com imputados criminosos, para que, em transação, como se de igual para igual, aquele alcance os seus fins através destes meios?
-» Ou será limite imaginar que a liberdade de negociar do delator está limitada, quer pela sugestão do benefício esperado, quer pela ameaça da sanção a que se sujeita caso não aceite a delação, ainda que dos seus anteriores comparsas?
-» Em que ponto de equilíbrio se pode valorar uma delação sem manifestação de arrependimento e interiorização dos valores do Estado de Direito, assunção, em suma, de uma conduta de reintegração social?
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Estou em crer que é um mundo novo. Cada achado obtido por delação enche o espaço mediático e encontra aplauso popular. Quem levantar dúvidas corre o risco de passar pela suspeita de querer a impunidade do crime. Um dia, porém, a fronteira entre os bons e os maus estará esbatida, o justo e o injusto será apenas uma questão de pragmática.