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Reforma do CPP (2): artigo 194º

Estou totalmente de acordo com a alteração ao Código de Processo Penal segundo a qual o juiz pode aplicar medida de coacção diversa, ainda que mais grave, quanto à sua natureza, «medida ou modalidade de execução» do que aquela outra proposta pelo Ministério Público quando se tratar de avaliar perigos superiores aos da pura perturbação do inquérito.
Primeiro, em nome do princípio, para mim basilar, do primado do judicial em matérias jurisdicional. A medida de coação é, pela sua natureza, um acto intrínseca e materialmente jurisdicional, porque pressupõe o ditar o Direito sobre uma controvérsia entre a liberdade e a segurança, entre os direitos do arguido e os poderes do Ministério Público. Só um juiz a pode decidir na totalidade do espectro do que há para decidir, sem limitações.
Segundo, e em relação directa com o que acabo de dizer, em nome da regra, para mim fundamental, da independência do poder judicial, que não pode ser o mero chancelar da legalidade de substâncias definidas pelo Ministério Público. Quando ouvi em tempos da boca de um juiz, referindo-se ao Ministério Público e precisamente em matéria de prisão preventiva, o «eles é que sabem se querem investigar com eles presos ou livres, a mim só me cabe controlar a legalidade e já me chega», confesso que a repugnância intelectual daquele «só» me feriu a sensibilidade, como se de auto-mutilação se tratasse, ademais vinda da boca de quem deveria assumir a postura de titular de um órgão de soberania e não de um simples oficial de chancelaria, de serviço à apostilha da legalidade formal.
E não se diga que em nome do princípio da vinculação temática o Ministério Público, porque delimita o objecto do processo com a sua acusação impede o juiz de condenar fora daquele quadro factual e jurídico que o titular da acusação pública desenhou e é do mesmo que se trata aqui, em minoria de razão. É que a dita vinculação temática – pelo qual a partir daquela acusação os poderes de conhecimento e de decisão e os limites do caso julgado judicial são os atinentes àquele objecto proposto ao tribunal – não limita o poder jurisdicional final, porque, se ao limite, o tribunal entender que a realidade é outra que conduza a crime diverso – ou seja, a haver alteração substancial – fica livre de ordenar a remessa do caso para inquérito para que esse mais seja conhecido pela Justiça. É a liberdade constitucional de não se sujeitar ao menos que não aceita que dá ao tribunal o poder constitucional de forçar o conhecimento do mais que lhe foi submetido para julgar. Ante isso, fará o Ministério Público o que entender, inclusivamente arquivar esse plus ultra, mas assumirá a responsabilidade pelos seus actos e pelas suas omissões [a seu tempo me referirei ao que esteja a acontecer em matéria de interpretação e consequente aplicação do n.º 2 do artigo 359º do CPP].
Terceiro, porque, ante a tendência que vejo desenhar-se em certas hostes do Ministério Público de entrarem no jogo da Justiça negociada, que haja juízes em Berlim que possam pôr ordem onde se exige Lei e não conveniência, autoridade e não combina. Ora só o sistema proposto evita que a medida coactiva corra o risco de recair sob a suspeita de que é uma forma de transaccionar interesses ao invés de cumprir a Lei.
Pode dizer-se que não se atribuiu a juiz a totalidade do poder pois este fica limitado à medida coactiva proposta pelo Ministério Público quando o argumento para a sua aplicação for a perturbação do inquérito e não o perigo de fuga ou fuga efectiva ou o receio de continuação ou de alteração da tranquilidade pública. Mas penso que esse pecúlio de reserva tem uma razão racional compatível com o núcleo essencial das atribuições do Ministério Público: aí e só aí está ele em condições únicas para propor a justa e adequada medida para proteger a prova do inquérito que conduz.
Enfim, prevê-se [para o n.º 8 desse preceito] que «o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição do recurso».
É de aplaudir também, pois que assim se garante um controlo eficaz do decidido, uma possibilidade efectiva de recurso e uma decisão em segunda instância com conhecimento de causa. 
Mas para se tratar de medida totalmente eficaz seria necessário ocorrerem duas circunstâncias, que não vejo previstas na proposta. Primeiro, que o requerimento de medida de coacção – nomeadamente quanto ablativa da liberdade – fosse articulado e fundamentado com elementos de prova dos autos que indiciassem os pressupostos gerais e específicos da medida proposta para que pudesse haver real controlo do pedido. Segundo, que tudo isso fosse feito constar de um apenso próprio, que seria o que subiria em recurso, permitindo salvaguardar os demais elementos dos autos que o Ministério pretendesse manter sob segredo de justiça, a vigorar. Em suma: a medida coactiva teria sido proposta, contraditada e decidida com base naquilo e seria sobre aquilo que o tribunal de recurso decidiria, acabando com o deprimente «como consta abundantemente dos autos», cabendo ao arguido adivinhar onde estaria essa cornucópia de abundância.
Propus isso mesmo num modestíssimo estudo com o qual contribui para o livro de homenagem ao Doutor Figueiredo Dias. Digo-o não por falsa modéstia mas porque tenho consciência de que poderia ter feito melhor, assim a minha vida intelectual não fosse devorada pela hidra voraz dos deveres da profissão de que faço ganha-pão.
P. S. Em pormenor, olhando para a nova redacção que o Ministério da Justiça propõe para o artigo 194º há redundância pois o previsto para o n.º 3 já resultava a contrario do n.º 2.
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