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José Rodrigues Miguéis: os que se aborrecem com o Direito

É um clássico e daria um numeroso clube, o dos que se aborreceram com o Direito, continuando alguns a viver nele envoltos como profissão. Tenho escrito no Artes entre as Letras, a propósito dos residentes e dos emigrados. Exemplo destes últimos, José Rodrigues Miguéis. Lembrei-me dele, numa nesga da oportunidade que me permitiu, há umas semanas, umas horas de pesquisa na Hemeroteca Municipal de Lisboa, no caso a ler a Seara Nova dos anos 1926-1927,  encontrei, não só a sua escrita, como os seus desenhos, alguns levados a capa da revista. Teresa Martins Marques publicou, entretanto, uma extensa biografia na forma de um diálogo imaginário entre a cientista Maria de Sousa com o biografado, seu amigo.

Foi na colectânea de crónicas que intitulou O Espelho Poliédrico, publicada em 1972 pelos Estúdios Cor, onde tinha como interlocutor o então funcionário da editora José de Sousa Saramago, que José Rodrigues Miguéis deixou o retrato daquele seu ser, inicial mas interrompido, o de possível jurista. Saíra da Faculdade de Direito e tentara uma modesta advocacia. Corria o ano de 1924, apesar de ter sido dos melhores classificados alunos do curso.

Já então a Literatura o tentara. Juntara-se, já finalista, ao jornal República, no qual foi apresentado em 1923 aos leitores como «rapaz cheio de talento, de vivacidade e com senso». Vaticinando-lhe um futuro, o jornal afirmava: «Trata-se de alguém que há-de ter um futuro brilhantíssimo na advocacia e nas letras».

O periódico acertou a metade ou talvez nem isso. Miguéis não vingou no Direito e nas Letras é hoje quase ignorado. Nem a carreira de professor, habilitado que estava com um curso de ciências pedagógicas, obtido em Bruxelas, o entusiamaria.

Numa biografia que escreveu sobre a sua vida e obra, publicada em 1990 pela Editorial Caminho, o embaixador Mário Neves lembra o seu activismo político e a circunstância de ter sido presidente eleito da Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Onésimo Teotónio de Almeida, por seu turno, no livro de estudos em sua homenagem dá-nos conta de quanto o exílio e o desengano contribuíram para o seu progressivo isolamento: «a pátria ficava-lhe cada vez mais distante e o rumo dos acontecimento pós-25 de Abril, ao contrário do que ele sempre esperara, apenas lhe acentuou a amargura, que só se intensificou até ao fim dos seus dias».

Há na sua escrita factos e sensações que são o elo de ligação aos temas jurídicos e sobretudo forenses. O conto a que chamou Punir, editado inicialmente na Seara Nova em 1926 e integrado numa compilação de contos em 1963 sob o título É Proibido Apontar, é disso exemplo. Narrativa de um personagem que se intitulava «Feliz Enciclopédia Ignorante», Mariano-Artur reflecte sobre a «pequena fraude», que presencia, ele e uma pequena multidão, a do jovem a viajar no carro eléctrico mas sem bilhete, a sua detenção e a volubilidade dos circunstantes ante o facto, afinal também a dele próprio.

E fica no livro, a ilustrar o contraditório do «desejo colérico de punir e o temor de punir», a denúncia da nossa variabilidade emotiva ante as coisas da Justiça, tão actual ainda: «Quero justiça intransigente e rectilínea e fria – e o meu coração dilui-se na piedade, como um torrão de açúcar em chá quente».

Advogado por pouco tempo da «muito defunta Associação dos Proprietários de Hotéis e Restaurantes de Lisboa», com escritório às Portas de Santo Antão, ali junto à Ginginha e à Casa das Iscas, associação aquela na maioria de galegos, como aliás a sua origem familiar, Miguéis, entre esta modestíssima clientela de donos de tabernas, casas de pasto e casas-da-malta para pernoita incerta, correndo entre as Execuções Fiscais e a Boa-Hora, ainda tentou ser ajudante do notário Azevedo Borralho, até ao ponto em que, «sufocado e neurastenizado», decidiu mudar de ares.

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