Arquivo aqui o texto lido no dia 8 de Abril do corrente, na Universidade Lusófona, em sessão dedicada à rememoração de Enrico Altavilla, a convite de Carlos Poiares, a quem fica a gratidão e o muito apreço.
Ante a moderna psicologia forense, tecnicista que se tornou, baseada numa lógica quantitativa, com soluções fundamentadas na estatística, a carecerem de validação em função da especificidade de cada país, sua cultura, perfil psicológico da sua população, do ambiente social de onde provêm das amostras, a obra de Enrico Altavilla não se pode considerar pioneira. O que dela resulta é uma visão humanista e diria íntima não apenas do delinquente como dos vários personagens que se movem no sistema de justiça.
As suas observações nem sempre são amáveis, pelo que correm o risco de ser repudiadas em nome do corporativismo que santifica cada classe diabolizando as demais.
Enrico Altavilla nasceu Aversa, na Sicília, em 1883 e faleceu a 15 de Fevereiro de 1968 em Nápoles.
Ainda estudante universitário publicou uma monografia sobre o suicídio, sob o título Suicídio, conhecimentos psicológicos e documentação estatística, obra prefaciada pelo professor Enrico Morselli, psiquiatra que ensinava na Universidade de Génova e cuja adesão, vindo da escola positivista, ao espiritismo se tornaria, aliás, controversa, mas não tão absurda como à primeira vista pode parecer se perscrutarmos no ser humano o anseio pela transcendência.
Sobre esta matéria publicaria, pouco depois, um segundo volume, ampliando agora a sua análise à abordagem judiciária do tema.
Teve como mestres o lendário Cesare Lombroso e Napoleone Colajanni.
Licenciar-se-ia na Universidade de Nápoles, com uma tese os factores biológicos e contextuais na delinquência culposa, universidade na qual desempenharia, por toda a vida, funções docentes.
O seu ensino centrou-se inicialmente nos domínios jurídicos do Direito Penal e do Processo Penal tendo publicado, a propósito, em 1934 o Manuale di diritto penale e o Manuale di procedura penale e em 1946 os Lineamenti di procedura penale.
Em 1925 daria à estampa o livro Psicologia Giudiziaria, obra que teria continuação no ano seguinte e inaugurava assim a rota pelo qual se tornaria conhecido e à qual dedicaria a sua vida intelectual e académica. É o centenário da edição deste livro que este ano se comemora.
Transpondo para o domínio jurídico puro o que alcançara no sector da psicologia, publicaria em 1932 o estudo intitulado sintomaticamente Teoria soggetiva del reato, no qual, como escreveria «delineei o esquema de uma lei penal que tivesse um fundamento psicológico».
Seguir-se-ia um longo período de maturação.
A partir de 1949, consolidando reflexões dispersas e um longo estudo, divulgaria, pelo seu fiel editor Alberto Morano, descendente de uma linhagem prestigiada de editores, o seu Il delinquente. Trattato de psicologia criminale e em 1951 os Lineamenti di antropologia criminale. Alberto Morano que, diga-se, deu à estampa os dez volumes da obra do processualista civil Piero Calamandrei.
Altavilla seria desde então consagrado como um dos fundadores da psicologia judiciária científica em Itália.
Em 1952 surgiria a sua obra de mais de 650 páginas denominada La Dinamica del Diritto, na qual o delinquente é avaliado não na estática da potência que gera a propensão para o crime, mas naquilo em que importa surpreendê-lo, dinamicamente, recenseando os factores que assumam valor sintomático do que virá a ser a prática futura do ilícito penal.
Segundo explicitou no prefácio dessa sua obra, nas primeiras duas partes do livro procede à análise da normalidade que se transmuta em loucura; na terceira à investigação sobre vários delitos que são potenciados por personalidades criminosas ou por desvios atípicos, nisso incluindo os crimes sexuais, contra as pessoas e também, surpreendentemente, os de finalidade patrimonial como aqueles em que, nas suas palavras «o delito é uma maior eficiência do factor biológico». A síntese, apresenta-a no último capítulo, na forma de guia para os juízes, «indicando-lhes os critérios a seguir para os dois juízos de que se deve compor a sentença penal: o “diagnóstico” da normalidade” e «a prognose da perigosidade».
Trata-se, em suma, por um lado, de uma justaposição entre o exame da capacidade de entender e de querer, geradoras da legitimidade da pena ou da necessidade da medida de segurança, ou ainda de uma composição sucessiva de pena seguida de medida de segurança; por outro, relevar a importância sintomática do delito para efeitos das medidas judiciais delineadas para a defesa social.Operoso até ao fim, conjugando a advocacia com o ensino, temporariamente deputado, Altavilla seria Presidente da Ordem dos Advogados de Nápoles; encontraria na vida forense muito do material empírico que, pela síntese e pela generalização, levou às conclusões teórico-práticas que formulou.
Estaria, aliás, presente em Lisboa no ano de 1962, a participar num congresso que não consegui localizar qual tenha sido.
A sua presença no nosso país fez-se sentir através dos trabalhos de tradução do juiz Fernando Bernardes de Miranda, que assinava como Fernando de Miranda. Nasceu em Fevereiro de 1909 e faleceu prematuramente em Abril de 1971.
Figura notável na judicatura, colaborador do ministro da Justiça Cavaleiro de Ferreira, tendo alcançado o cargo de conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, com obra publicada nomeadamente no domínio do Direito Comercial, deve-se a Fernando de Miranda a generosidade de ter vertido para a nossa língua obras cruciais do pensamento jurídico, como para o editor de Coimbra Arménio Amado, logo em 1938, o livro A Justiça Penal de Hoje, de Donnedieu de Vabres, em 1939, ainda apenas licenciado em Direito, os Ao lado das vítimas – discursos de Acusação de Enrico Ferri, de que sairia nova edição em 1953, em 1941 nos tenha legado a tradução do livro Morfologia Social do sociólogo francês de pendor durkheimiano Maurice Halbwachs, em 1942 a obra O Direito de Defesa de Vincenzo La Medica, em 1943 A Vaidade, ensaio de psicologia e crítica de Luigi Battistelli, autor de que traduziria, agora para a Coimbra Editora, em 1963 A Mentira nos Tribunais, sendo que no ano antecedente traduzira para a mesma editorial, a Introdução ao Estudo da Criminologia de Michelangelo Peláez.
Em 1956 seria por tradução sua que a Coimbra Editora daria ao conhecimento do público português a Teoria Geral do Negócio Jurídico de Emilio Betti e, sem dizer tudo, em 1969 A Doutrina do Estado de Giorgio Balladore Pallier.
De Enrico Altavilla, Miranda traduziria, entre 1957 e 1960, os então quatro volumes, publicados por Arménio Amado-Sucessor, do livro Psicologia Judiciária e em 1964, pela Coimbra Editora, os três volumes de O Delinquente e a Lei Penal, cuja segunda edição surgira em Itália dez anos antes, livro em que se analisam as causas biológicas do delito, e que, na edição portuguesa, vem enriquecido com dois estudos complementares, o primeiro dedicado à influência do progresso técnico sobre a criminalidade, o segundo relativo à velha e à nova antropologia criminal.
Os estudos de Enrico Altavilla sobre a personalidade do agente do crime encontrariam eco, entre nós, no pensamento de Manuel Cavaleiro de Ferreira, cuja dissertação para o concurso de professor extraordinário, intitulada A personalidade do delinquente na repressão e na prevenção, editada em 1943 pela Portugália, traduziria muitas das suas ideias, considerando a matéria «a charneira do direito penal», vertendo-a, porém, na doutrina da «culpa na formação da personalidade», inspirada no pensamento dos alemães Mezger e Bockelmann.
Naquele estudo, o referido professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, cita, em bibliografia a monografia L’ Appartenenza dei Reato alla Personalità Psico-etica del suo Autore, publicado por Altavilla na revista Scuola Positiva em 1934 e o livro Teoria Soggetiva dei Reato editado no ano antecedente.
Mas também Eduardo Correia, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que assinaria o projecto de Código Penal já divulgado em 1964, não acolhendo expressamente o pensamento de Altavilla, reconheceria no relatório do referido texto, e isso vem citado por Fernando de Miranda que «o modo de ser ou a personalidade do delinquente penetrou, de forma irrecusável e irrecusada, em todas as modernas legislações e correntes de pensamento que do crime tratam».
E actualmente a personalidade do agente do crime é valor adquirido a relevar quer no âmbito do Direito Criminal quer do processo criminal, sendo objecto de referência para a individualização da pena, com o apoio pericial dos relatórios de reinserção social.
Dinamizados na década de sessenta pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada, os temas da sua relevância em contexto jurídico viriam a encontrar expressão na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação do Porto, em 1985, em 1991 no Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho e posteriormente, em 1997, na Universidade Lusófona.
Recentrando o tema desta breve comunicação, importa, porém, reconhecer que é a Carlos Poiares que se deve a mais ampla difusão do contributo que o nosso homenageado trouxe ao território da psicologia forense, o que está evidenciado no seu estudo sobre a psicologia do testemunho, publicado em 2004 subtitulado Contribuição para a aproximação da verdade judicial à verdade in Revista jurídica da Universidade Portucalense Infante D. Henrique, na sequência de artigo que a revista Subjudice editara em 2001 sobre a intervenção juspsicológica.
Ainda hoje, note-se, a lição de Enrico Altavilla está presente no meio universitário, citada em apoio de teses académicas de que me permito citar, em primeiro lugar, e relevem-me as omissões, e porque sustentadas nesta Universidade Lusófona, as dissertações de mestrado de Patrícia Oliveira dos Passos, epigrafada Da Justiça à Psicologia Forense, arguida em 2014, a de Flávia Mendonça Sousa, intitulada Psicologia das Motivações Ajurídicas do Sentenciar, sustentada em 2016, os estudos de Maria da Cunha Louro, nomeadamente a sua tese de doutoramento sustentada na Universidade de Múrcia.
Importa igualmente referir, também a título exemplificativo, a dissertação de Rita Estrela Carneiro, de 2017, sobre a obtenção do testemunho do menor, defendida na Faculdade de Direito da Universidade Clássica, ou a antecedente dissertação de Mestrado em Medicina Legal, de Carlos Alberto Dias Ribas sobre A Credibilidade do Testemunho, levada a provas em 2011 no Instituto de Ciências Bio-Médicas Abel Salazar.
O que acabo de dizer não preclude a constatação de que a psicologia criminal não tenha no nosso país uma história já firmada em tempos mais remotos.
Citando Rui Abrunhosa Gonçalves, em artigo publicado na revista Análise Psicológica, importa recordar que em 1890 Ferreira Deusdado publicara em francês os Essais de Psychologie Criminelle nos quais se demarcava da interpretação lombrosiana da criminalidade e também o trabalho de Luiz Viegas, o qual em 1918 procede à transformação do Posto Anthropométrico do Porto de que era Director, na “Repartição de Antropologia Criminal, Psicologia Experimental e Identificação Civil do Porto”, constituindo a primeira menção oficial nacional, onde a Psicologia surge ligada aos contextos de Justiça e, em particular, à avaliação da criminalidade. Na mesma linha, já em 1954 Rui Carrington da Costa faria publicar na revista Scientia Iuridica um estudo sobre a psicologia do testemunho.
Não me foi possível escalpelizar a projeção do pensamento de Altavilla no âmbito dos Institutos de Criminologia, lembrando apenas, os estudos de Luiz de Pina envolvendo, em 1938, a aplicação, no âmbito da delegação do Porto daquela instituição, de provas psicológicas, sobretudo o teste de Rorschach, no âmbito da criminologia.
É impossível no âmbito desta comunicação abarcar a totalidade da sua obra ou a plena abrangência do seu fulgurante pensamento, o qual tenta a conciliação possível das abordagens positivistas de Enrico Ferri, Cesare Lombroso e Raffaele Garofalo e sobretudo, nas palavras do mesmo, uma vivificação e não uma destruição do Direito Criminal e Processual Criminal.
Tomarei, pois, entre tantos, como referência o livro Psicologia Judiciária, editado, em Coimbra, por Arménio Amado, seguindo a 4ª edição de 1955, em quatro volumes, quando o autor já pensava na quinta edição.
Trata-se de uma mescla não só de observação empírica, estudos científicos e obra de aconselhamento. A leitura é fácil e, mais do que isso, aliciante.
Ao redigir um dos textos prefaciais da obra, Gennaro Marciano, advogado e parlamentar, que Altavilla considera, e assim o escreve na introdução, como seu mestre e «o maior advogado jurista que teve a Itália nestes último cinquenta anos», anota que o livro colmata uma lacuna «pondo de parte os obsoletos, gastos e enferrujados critérios empíricos tradicionais» e apoia-se «nos ensinamentos e nos progressos das ciências modernas».
A sua difusão internacionalizou-se, havendo tradução em inúmeras línguas.
Livro muito extenso, analisa, em linguagem muito apelativa, nos terceiros, quarto e quinto volume, cada um dos personagens do universo forense, mormente criminal, começando pelo acusado, para abordar seguidamente a testemunha, o perito, o intérprete, o advogado, o ministério público e o juiz, não sem que, entremeie temas caros ao seu autor como a psicologia do suicídio, a acareação, e um capítulo final que intitulou «reflexos psicológicos no direito processual penal».
O escopo teórico que anima é exposto nos primeiros dois volumes, nos quais analisa a normalidade e as perturbações do processo psicológico, o tema das doenças mentais e sua simulação, bem como a matéria da interpretação psicológica de documentos, o reconhecimento e identificação de pessoas e de coisas, bem como os métodos para conhecer a verdade.
No texto introdutório a essa 4ª edição, Altavilla escreve, a propósito do livro, que «nele palpita toda a longa vida de quem tem querido ser, a um tempo, um criminólogo, um jurista e um advogado penalista, o que lhe tornou possível o conúbio entre o direito, a psicologia e a criminologia; entre a teoria e a prática».
E dando mostras do espírito altruísta, que é elemento estruturante da sua biografia, remata esse breve texto por esta forma: «entre 1948 e 1955, muitos estudiosos trouxeram a esta matéria o seu útil contributo: utilizei os seus estudos para dar aos jovens, que, como juízes e advogados, agora chegaram às lides judiciárias, um trabalho completamente em dia; e se ele lhes puder ser útil como o foi aos seus predecessores, terei atingido o meu fim plenamente».
Ressaltando quanto existe de inovador nesta obra, Enrico Ferri, em texto prefacial, acentua que «este livro é uma nova prova da fecundidade determinada, nas disciplinas criminais, pela aplicação do método positivo, em confronto com a inconcludência das abstrações e obscuridades da “dogmática jurídica” que utiliza unicamente o cómodo subsídio da lógica abstracta».
De entre todas as personagens que ali analisa, permitam-me que me centre no advogado, a profissão daquele que hoje homenageamos e é também a minha.
Relativamente ao advogado, a sua primeira reflexão vai no sentido se relevar a sua importância enquanto titular de uma função necessária para criar «um equilíbrio de forças dialéticas capaz de «tranquilizar o juiz», cuja decisão, ante a inferioridade do acusado no duelo judiciário deve ser determinada pela culpa do acusado e não «pela sua incapacidade para fazer refulgir a sua inocência».
Segue-se uma tomada de posição quanto ao tema da aceitação da denominada “causa injusta”, a defesa da iniquidade, tópico relativamente ao qual conclui, em contraciclo com alguma doutrina disseminada no seu tempo, no que às causas penais respeita, porquanto nestas «mesmo aqueles que o advogado saiba culpados, não só podem mas devem ser por ele defendidos», embora isso sem excluir a liberdade que tem o advogado de aceitar ou rejeitar o patrocínio de uma causa, mas apenas no sentido de que, uma vez aceite o mandato, cabe-lhe levar a cabo a defesa total.
Assim situado o perfil da defesa penal, surgem as reflexões em que a natureza psicológica das mesmas já se torna evidente.
Logo o tema, hoje tão actual, da interrelação do advogado com a opinião pública, aqui transposta na vertente da apreciação daquele por esta. São agudas as suas observações, ao recuperarem a valoração pública dos causídicos, ora como excelência ora como figuras execráveis, levados pelo juízo colectivo ao pelourinho da infâmia ante a sua alegada maleabilidade moral e a ductibilidade intelectual, aptos alguns a defender uma coisa e a sua contrária, quando do que se trata, afinal, é de encontrar sempre o que seja defensável em todos os vectores relevantes para uma decisão judicial justa.
Depois, Altavilla avança, em termos algo ousados, com a questão da demonstração da inocência ante o magistrado que «salvo raras e nobilíssimos casos, é um inerte, inclinado a conformar-se com as aparências».
Entra aqui no seu discurso uma dura perspectiva sua relativamente à psicologia judicial que estas palavras resumem:
«[…] o acusado é, apesar da opinião contrária dos teóricos, por uma presunção fatal, considerado culpado e, naturalmente, o juiz está contra ele. E isto ainda mais se agrava quando tenha havido a expedição de um mandado de captura que cria um sentimento de responsabilidade e um dever de coerência, que militam formidavelmente, contra o preso»; intervém, porém, o advogado e o juiz «que é, normalmente, um homem probo, ouve-o com desconfiança, mas começa a sentir abalada a sua certeza. E é suficiente que se crie esta incerteza, que a possibilidade do erro cintile na tranquila consciência do magistrado, para que todo o processo lhe apareça sob uma luz diferente e, mesmo que não chegue a uma conclusão discordante daquela que até então o dominou, sente a necessidade de uma indagação mais ampla […]».
Mas, segundo ele, «onde verdadeiramente refulge o trabalho do advogado, é na sua compreensão do crime e do seu autor». E uma vez mais surge a problemática do juiz. Retomo a sua exposição:
«Ora o juiz é, frequentemente, transformado pelo seu trabalho quotidiano num mecanismo em que tudo se uniformiza e só persiste a diversidade das penas fixadas pelo Código, de modo a não percepcionar pequenas notas diferenciais […]. E é esta, repito, a missão do advogado: interromper esta cinzenta e uniforme visão, levar à ribalta da consciência do juiz um homem, diferente de qualquer outro, com motivos determinantes especiais, o qual cometeu um crime, que, em qualquer coisa, se diferencia de todos os outros crimes».
Escrito sob o domínio do Código Penal fascista firmado a 19 de Outubro de 1930 pelo ministro da Justiça Alfredo Rocco, o seu pensamento tem de enfrentar a subjacente «concepção biológica do crime» com a exasperação repressiva sobre a loucura psíquica por correlação à loucura moral que é, para si, a essência do crime, não hesita em afirmar que tal visão das coisas e uma tal previsão legislativa «faz com que a anomalia e a loucura representem como que o buraco de saída, no círculo fechado de um processo onde a prova é férrea e a piedade não encontra germes para fecundar».
Conhecedor, por experiência e por ciência, o carácter relativo da verdade, distinguindo a verdade real da processual – tema a que dedica largo espaço nos seus estudos – sintetiza, em estilo de programa, o trabalho do advogado:
«a) Impedir que o juiz substitua por uma convicção de origem extraprocessual as provas reunidas, quando estas conduzirem à inocência do advogado
«b) Arrastar o juiz para fora do âmbito das provas, se estas apontarem um inocente como culpado».
Poderia continuar longamente a seguir estas páginas que guardam ainda hoje profunda actualidade e que deveriam ser um manual de ensino na Ordem dos Advogados aos estagiários que se candidatam à advocacia.
Importa, porém, terminar e faço-o com uma questão: que podemos reter hoje do contributo da obra de Enrico Altavilla?
Em primeiríssima linha, a concepção de um Direito fundado na pessoa, focado não apenas nos actos de cuja criminalidade se trata, mas também da personalidade que subjaz à sua prática. Tema actual esse, nestes tempos em que a tecnocracia invade o mundo jurídico, tornando a justiça estatística, a produtividade critério de avaliação de magistrados, a celeridade valor de uma suposta boa justiça.
Tema actual também quando as testemunhas de personalidade do arguido são amiúde, ouvidas em julgamento sem grande interesse e com escassa crença na sua valia e os relatórios provindos da reinserção social são maioritariamente o recorte superficial das condições sociais e económicas, sem aprofundada investigação, e os exames de personalidade que o Código de Processo Penal prevê têm aparição raríssima e apenas nos crimes contra as pessoas.
E, no entanto, retomando as palavras de Gennaro Marciano «cada processo é como um caso clínico, que requer o seu diagnóstico e a sua própria terapêutica».
Claro que vivemos hoje na ilusão do rigor dos critérios psicométricos como instrumento adequado da psicologia forense.
Mas como acentua, com a autoridade científica que lhe é reconhecida, o professor Mário Manuel Rodrigues Simões, no livro, de que é um dos coordenadores e coautor, publicado em 2017, dedicado aos instrumentos de avaliação técnica da Psicologia Forense, muitos desses instrumentos, incluindo a checklist PCL-R, elaborada, em primeira edição, pelo psicólogo forense canadiano Robert Hare, em 1991, para a avaliação das psicopatias, mau grado ser considerado o gold standard da avaliação, visando avaliar clinicamente, nomeadamente por métodos estatísticos, traços e não estados de personalidade, deve ser ponderado com alguma retração prudencial.
É que, citando as suas palavras nessa obra:
«[…] os resultados por nós encontrados, em comparação com os resultados obtidos nas amostras norte-americanas, nos alertam para a eventualidade de existência de diferenças culturais».
Para além disso, a reflexão de Altavilla não surge como mera criminologia naquele sentido estrito em que esta se limite a indagar as causas do crime, antes permita que esta forneça, mais amplamente, instrumentos adestrados a compreender o modo de ser e agir dos sujeitos participantes no processo criminal.
Mas mais ainda: no plano operativo, os seus estudos são bases de trabalho para a aferição da prova testemunhal, para a interpretação psicológica da vontade declarada em documentos, bem como no que respeita aos temas psíquicos que se colocam em juízo, nisso incluído os que traduzem os seus efeitos a nível da aferição da inimputabilidade e mesmo os juízos mais específicos como a avaliação do depoimento de menores.
Mas é, sobretudo embora equilibrado membro da escola positiva, de que não seguiu os exageros, que o seu contributo é mais eficaz. Não só o seu profundo saber lhe confere autoridade, mas a mestria estilística do seu modo de escrever, tornam-no leitura eficaz para aqueles que, nestes anos difíceis que vivemos, de concepção do Direito como pura tecnocracia jurídica, e endurecimento repressivo e subtração de garantias, não desesperam por um Direito no qual o Homem seja a medida de todas as coisas.
Dir-se-á, em lógica derrogatória, que a obra de Enrico Altavilla aparenta ser mais Literatura do que Ciência, opinião para a qual contribui, por um lado, precisamente aquela cuidada estilística que preside à sua escrita, por outro a matematização que passou a ser hoje método e critério de validação da análise criminológica e que o torna método hoje em desuso.
Responder a esta crítica exige que se encontre resposta segura quanto à valia de cada um destes critérios, o contemporâneo quantitativo ou aquele outro qualitativo, o primeiro a enunciar leis comportamentais estatísticas, de probabilidade de ocorrência fundadas em médias ponderadas, em que a pessoa se torna um número dentro da grelha das tipologias classificatórias, o segundo a proceder a enunciados descritivos caracterizadores de uma individualidade humana que o algoritmo não subverte tornando-o uma mera ocorrência matemática.
Dizendo de outro modo, é lendo obras como as de Enrico Altavilla que a pessoa do leitor fica mais bem capacitado a conhecer o seu semelhante, a honrá-lo com dignidade de ser humano, habilitado a compreender a sua individualidade no seio da complexidade da multidão humana.
É sobretudo lendo Altavilla que se relativiza a verdade judiciária emergente da íntima convicção, o que logo evidencia não ter a mesma valor absoluto, nem definitivo, salvo o necessário para uma presunção de certeza exigida por razões estritamente práticas de funcionamento da justiça.
Julgo, enfim, que melhor fecho desta minha breve intervenção serão as palavras de Domenico Ragozzino, que teria um destino trágico face a acontecimentos ocorridos no manicómio de Aversa, que levariam à sua condenação e absolvição em recurso, mas não lhe poupariam o horror do suicídio, e que numa nótula intitulada Ricordo di Enrico Altavilla nos deixou este testemunho:
«Altavilla, para além de ser um mestre do direito e da antropologia criminal, era um homem rico em humanidade, generoso e justo, bem como um orador supremo e fascinante.
«O autor destas escassas notas teve a sorte de apreciar pessoalmente os seus dons de espírito e de coração durante uma colaboração científica de dez anos.
«Mesmo quando já era avançado em idade, manteve-se sempre extremamente lúcido e, até ao fim da sua vida, contribuiu decisivamente para a organização e realização dos exercícios de psiquiatria judiciária para os estudantes da Faculdade de Direito, que ele tanto amava e a quem prodigalizava tesouros de ciência e de humanidade, cheios de interesse científico e humano».