Em 1940 Álvaro Barreirinhas Cunhal apresentava-se a exames na Faculdade de Direito de Lisboa para concluir a sua licenciatura. Para o avaliar Manuel Cavaleiro de Ferreira, que viria a ser Ministro da Justiça de Oliveira Salazar em 1945.
O resultado final da licenciatura foram dezasseis valores, uma alta classificação para a época. Examinadores das outras cadeiras Marcelo Caetano, Pedro Pita e Jaime Gouveia.
O aluno apresentara-se a provas sob vigilância policial. Corria o mês de Julho. Cunhal havia sido preso a 30 de Maio. Ficaria em reclusão seis meses.
O tema não poderia ser mais provocatório, o modo de o apresentar apto a gerar confronto.
Lida hoje, e li-o agora, denota acto de coragem cívica. Mas, talvez pelo contexto em que surgiu, não evidencia a invulgar inteligência do candidato. Digo-o precisamente por se comemorarem cem anos sobre o seu nascimento.E no Portugal contemporâneo talvez não haja melhor forma de celebrar o que seja no campo da política do que ensaiar a verdade, que seja a nossa verdade, contra a hagiografia feita História.
A tese, que já foi apresentada publicamente como sendo a de doutoramento, era a dissertação obrigatória para a sua licenciatura. É breve, escrita em penosas circunstâncias, o seu autor impedido, por acto da PVDE, a polícia política antecessora da PIDE, de rever o próprio texto.
Ousa enfrentar uma contradição que tem por mortal do sistema: um capitalismos imperialista que fomenta o aborto, pelas suas próprias leis de funcionamento e o criminaliza, que tem de incrementar a natalidade e por isso mesmo rejeita a interrupção dos possíveis nascimentos.
É esta a linha de raciocínio do pequeno livro. Passemos em revista as teses do autor.
O capitalismo fomenta o aborto, porque para os trabalhadores um novo filho é mais uma boca para a miséria, um candidato à mortalidade infantil, mais um a comer do pouco que há no magro prato do sustento diário. O capitalismo criminaliza, porém, o aborto, porque, para isso edita leis que o punem e diz defender o bem vida, quando, pela sua dinâmica, atenta contra ela, pela exploração impiedosa da força de trabalho em condições de insalubridade.
O capitalismo, por outro lado, instiga à natalidade porque, segundo marxismo, quer o exército de reserva dos desempregados que é a condição do rebaixamento salarial, bem como a “carne para canhão” com que alimenta o seu belicismo congénito, e por isso mesmo reprime os que fazem com que novos seres humanos não surjam.
Isto para uns, porque para os burgueses, o aborto é escamoteado como forma de esconder a moral hipócrita dos amores clandestinos, a gravidez indesejada das “criadas” submissas à cupidez dos seus patrões.
O livro não é só isto, mas é muito isto. Além disso, tem um capítulo inicial sobre «o desenvolvimento do capitalismo, a evolução demográfica e a política da natalidade». E culmina com a exaltação da legislação soviética sobre a matéria, de 1937, considerada uma «experiência brilhantes».
Onde está o aquém da obra face ao autor?
Primeiro, na linguagem usada, característica de uma escrita panfletária, de denúncia social e de mobilização de massas, mas longe da necessária analítica que um estudo científico exige.
Segundo, porque tese jurídica, esperar-se-ia que alguns dos enunciados que ali se afloram encontrassem desenvolvimentos que se justificavam. Cunhal enfrenta a homologia entre o aborto e o homicídio, que é um dos postulados do sistema de então, ante o qual se tratava em qualquer caso de suprimir uma vida. Mas não desenvolve a séria questão que equaciona, que a tutela ao menos dos nascituros – ainda que não, à época a dos concepturos – já indiciava como contradição lógica do sistema punitivo.
Ficou o que, a nível de política legislativa, importaria trazer a capítulo: a ineficácia da repressão, a coexistência da mesma com o aborto clandestino, de que era meio instigador. Nisso a valentia do aluno e a ousadia de trazer a lume a sociologia do horror em que tudo se movia ante a hipocrisia velhaca do Direito teve o seu ensejo e o seu local.
Claro que eram tempos em que Ary dos Santos [ver aqui, não confundir com o poeta] escrevia, como o havia feito em 1935 na sua monografia sobre o tema: «Nem no caso da prenhez ser consequência de violação sobre mulheres idiotas admitimos que seja provocado o aborto, visto que, sendo ainda muito obscuras as leis da hereditariedade, o que há que fazer, como noutros casos de violações, é confiar-se a criança aos cuidados do Estado.»
Tempos em que era necessário lutar, rumo à vitória!
Liberto, licenciado, Álvaro Cunhal trabalharia como regente de estudos no “Colégio Moderno”. Aí teria como aluno Mário Alberto Nobre Lopes Soares.