Há livros que são eternamente actuais. A esses se chamam “clássicos”. No Direito Criminal o livro do Marquês de Beccaria “Dos Delitos e das Penas” é um desses.
Trata-se de um falso pequeno livro. Sobretudo as páginas iniciais. Quem quiser perceber o que lê e não apenas lêr para ir lendo, tem dificuldade em prosseguir. Não porque a escrita seja densa sim porque as ideias nos transportam para o inesperado. Na aparência do “more geometrico” é um livro de poética.
Reconciliado com o Direito, resolvi ir aos livros iniciais. É porque há um ilogismo na nossa formação escolar. Aprendemos os princípios de um Direito que não conhecemos. Depois de o conhecer já esquecemos que ele tem princípios ou devia tê-los para não serem apenas leis ou arbítrios decisórios de aparência jurídica. E que pode ser-se feliz ao estudar o que por vezes se ensina como uma sensaborona maçadoria.
Nesta obra a ideia da origem das penas é peculiar: nasce nos sentimentos e visa agir sobre os sentimentos. A existência sensitiva do homem, sendo o que o torna mais humano, tornada a razão mãe de monstros, ganha aqui toda a sua evidência e sobretudo a melhor expressão.
Porque os homens têm medo de que a sua liberdade conquistada seja precária – «tornada inútil pela incerteza de ser conservada» – então «se uniram em sociedade» e nela cada um abdica um pouco da sua liberdade «para gozar o restante com segurança e tranquilidade». As leis são assim matematicamente – e o autor era matemático e economista – a soma das parcelas de liberdade individual sacrificada em nome da qual se enfrentam os déspotas individuais, os que querem do «depósito comum» das liberdades retirar mais do que a sua parte. Ora para que estas «usurpações privadas» não sucedam, é preciso que tais prevaricadores sejam confrontados com «argumentos sensíveis».
Ora eis as penas: «argumentos sensíveis» que «firam os sentidos» e impeçam o triunfo do «princípio universal de dissolução». Parecem ser a tirania quando afinal visam esconjurar tiranetes.
Nascidas do medo, as penas são editadas e aplicadas pelo medo. «Apavorados» de medo de que se condene um inocente os legisladores «carregam a jurisprudência de excessivas formalidades», «apavorados» por «delitos graves e difíceis de provar julgar-se-iam na necessidade de transpor as mesmas formalidades (…)».
Há nesta fórmula refinamento e ironia. Educado pelos jesuítas o autor diz o que quer dizer através do que não parece dito.
Editado em português pela Fundação Calouste Gulbenkian, o livro, traduzido e apresentado por Faria Costa tem um único senão: falta-lhe uma biografia deste que deveria ser “o Divino Marquês”. Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, nasceu em Milão. Deu a obra em causa à estampa por altura de 1764, anonimamente. Fora iluminado por Montesquieu e por Voltaire. Temperara a ânsia de lógica com a de justiça. Ainda viveria o suficiente para assistir ao surgimento da Revolução Francesa. Morreu quando nesta se instalou o Terror e com ele milhares de pessoas foram sumariamente guilhotinadas.