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O processo

O processo. Assim se chama a obra mais conhecida de Kafka. Não é desse que falo mas também é desse que falo. Não deste ou daquele outro, mas do conceito que ele traduz, o meio de que ele se tornou instrumento e ideia por antonomásia.
É o processo que permite criar a verdade possível, a realidade hipotética em que uma acusação se consubstancia. É através do processo que se faz a experimentação da compatibilidade da demonstração com o demonstrável, o transformar o postulado em axioma.
É essa acusação um recorte do real, uma amputação do real, uma deformação do real, uma simplificação do real? Que importa? O processo dá-lhe dignidade jurídica e legitimidade moral transmutando tudo isso no que chama «o objecto do processo», que o sistema assume como sendo o limite do cognoscível e do decidendo.
Julgam-me por aquilo pelo qual tantos outros não são sequer acusados e grito por injustiça relativa? Que vale isso se para quem me julga interessa apenas, e nisso trabalha como missão, aquele meu caso e não os possíveis casos outros que, pois que não acusados, é como se não existissem e nenhum deles fará mais do que história não judiciária, mundo de irrelevâncias que sendo escândalos por isso se tornam em nada.
É o processo que permite a selecção, o jogo da oportunidade acusatória pelo qual todo o crime tem de ser acusado mas só é julgado aquele em que houve acusação? Para quê gritar se tão tantos os chamados e tão poucos os escollhidos e nisso assenta certa Justiça maior que a humana, a própria Justiça Divina, que anatemiza a eleição incondicional?
Vem a História mostrar mais tarde que a realidade não coincide com a verdade que o processo substanciou como sendo o transitável, cognomimando-a de «material»? Que importa se faz parte da dogmática do sistema ele impôr-se como autoridade por esgotamento, o plausível como convicção, a experiência comum do comum vulgo como critério final onde devia haver o escrúpulo do mais sábio e do mais prudente?
É o processo isto mesmo, a coisa em si, o meio pelo qual o processado no final do longo corredor está pronto para o que for que lhe ponha termo, clamando apenas pelo termo da sujeição, porque pior que condenado é ter sido processado.
Por lenitiva que seja a condenação, por agraciante que seja a absolvição, todo o sofrimento, o rebaixamento, a diminuição estatutária, a diminuição cívica, a redução patrimonial, a perda mesmo, provisória que seja, da liberdade, cumprem os fins o gosto da vitória do processado confunde-se-lhe com o da derrota, insípidos e indiferentes. 
O fim de que o processo deveria ser instrumento atinge-se pelo próprio processo. Ei-lo, pois, como a criatura do máximo poder pela mínima substância, o labirinto das formas pejado dos alçapões das formalidades, a liturgia cerimonial do acto, de que não há ressurreição, iniciada pela defunção do ser. Sujeito à arguição ele é a antítese da sua pesumida inocência. «Para encontrar a paz, o acusado quer encontrar uma justificação para a sua pena: o castigo procura o crime». Milan Kundera disse-o. A metamorfose transforma o ser em insecto.
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