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O in dubio pro reo e seus limites

A configuração do in dubio pro reo, como fundamento da não condenação penal exige alguma clarificação.

Primeiro, ele não configura regra probatória em si, mas consiste num princípio de natureza conclusiva, a aplicar depois de estar esgotada precisamente a apreciação da prova.

Segundo, ele é uma decorrência da impossibilidade de um non liquet judicial, porquanto, ante uma prova não concludente, o tribunal, porquanto tem de decidir, só tem uma única solução legal: absolver.

Terceiro, não se trata de um princípio de interpretação de normas jurídicas, pois aí o que governa é a regra in dubio favorabilia sunt amplianda, odiosa restringenda.

Não tão coerente é a articulação de tal princípio com o da presunção de inocência. É que por um lado, esta tem assento constitucional expresso e não como o in dubio uma consagração meramente implícita e, talvez por isso, se tem encontrado uma constitucionalização deste como uma derivada da consagração constitucional daquele, ou, como já foi proposto por Miguel Pedrosa Machado, na menção à função integradora dos princípios gerais do processo penal, quaisquer que eles sejam e é esse o critério expresso pelo artigo 4º do Código de Processo Penal. E o in dubio seria um desses princípios gerais inerentes à regra que temos hoje por injuntiva, a do processo justo, conceito, aliás, indeterminado, imprecisão cujas consequências se adivinham.

São, porém, realidades diversas: a presunção de inocência é não só uma regra que projecta os seus efeitos a nível da prova, como é critério orientador global dos sistema processual penal. E mesmo no âmbito da prova, o que nele inculca como seu efeito é a impossibilidade de a culpa ser presumida, antes ter de ser demonstrada. Que não se trate de um ónus para o acusador é óbvio por não ser pertinente este conceito, de matriz claramente civilística, no domínio do processo criminal. Mas que tal não preclude que a condenação penal seja inviável sem evidência concludente do facto e da culpa e da inexistência do que possa impedir a responsabilização, isso parece fora de questão.

Retomando o in dubio: a sua aplicabilidade ocorre, pois, exaurida a obrigatória demonstração probatória, sendo inviável vencer uma dúvida razoável, minando esta a formação de uma íntima convicção no sentido condenatório. A sua origem histórica não é clara e a ideia que avulta e alguma da nossa jurisprudência é que o seu surgimento é tão próximo como no século dezanove, o que não se evidenciaria face à formulação na língua latina. Deve-se a Peter Hotapples no livro publicado pela De Gruyter, em 1965, sob o título  Die Entwicklungsgeschichte des Grundsatzes “in dubio pro reo” a sua localização pretérita mais remota.

Foi com estes parâmetros [e no que fui escrevendo por aqui] que li o interessante acórdão da Relação de Lisboa, proferido a 04-06-2024 [no processo n.º15/20.2GTALQ.L1-5, relatora Carla Francisco, texto integral aqui] do qual me permito citar este longo mas esclarecedor excerto:

«Alega ainda o arguido que no caso em apreço se mostra violado o princípio in dubio pro reo.
Segundo este princípio, quando o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.
Como refere Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal “, I, pág. 205, a dúvida relevante para este efeito tem que ser uma dúvida razoável, fundada em razões adequadas e não uma qualquer dúvida.
No mesmo sentido se decidiu no Ac. STJ de 5/07/07, no processo nº 07P2279, em que foi relator Simas Santos, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ Se o recorrente invoca que foi violado o princípio in dubio pro reo, tem de impugnar a decisão da Relação, contrariando-a e afirmando e demonstrando que o Tribunal ficara na dúvida e mesmo assim decidira contra si (o arguido).
Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido m obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.”
Também no Ac. deste TRL de 10/01/18, proferido no processo nº 63/07.8TELSB-3, em que foi relator Nuno Coelho, in www.dgsi.pt, se decidiu que: “A certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica.
O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto, estando umbilicalmente ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio «in dubio pro reo» impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável. De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido – cfr. acórdão do STJ de 2/5/1996, CJ/STJ, tomo II/96, pp. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspetivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.”
Verifica-se, assim, que a escolha da perspetiva probatória que favorece o acusado só se impõe quando se mostrarem esgotadas todas as operações de análise e de confronto de toda a prova produzida, apreciada conjugadamente e em conformidade com as máximas da experiência, da lógica geralmente aceite e do normal acontecer das coisas e, ainda assim, subsista mais do que uma possibilidade de igual verosimilhança e razoabilidade no espírito do julgador.
Para que haja violação do princípio do in dubio pro reo é preciso que, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, o julgador decida em desfavor do arguido.
Sucede que, no caso dos presentes autos tal situação não ocorreu.
Como se deixou supra referido, a factualidade apurada fundamentou-se na prova produzida em julgamento e está conforme à mesma, não decorrendo da decisão em apreço, nomeadamente da factualidade assente e da sua motivação, que o julgador tivesse tido qualquer dúvida ou hesitação quanto à valoração da prova e à fixação dos factos, não tendo, para além do mais, o recorrente indicado prova que obrigasse a uma decisão diferente da que foi adoptada pelo Tribunal a quo.
Uma vez que os factos dados como provados na decisão recorrida são uma consequência lógica, racional e plausível da prova produzida em julgamento, à qual o Tribunal atribuiu credibilidade e verosimilhança, não se pode pôr em causa, sem mais, a convicção formada pelo julgador, sob pena de violação do princípio da livre apreciação da prova».

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