Foi-me assinalado, como tópico de intervenção, no evento organizado sob a égide do Conselho Superior da Magistratura, a relação entre os megaprocessos e a presunção de inocência em processos mediatizados. Ficam aqui umas notas do que explicitei na sessão de hoje, dia 8 de Fevereiro.
1. Primeiro, os conceitos e os princípios, na minha perspectiva do Direito:
a-» se o processo penal visa alcançar a certeza moral, que não a científica, a posição moral do juiz deve ser a de dúvida permanente, numa lógica de cepticismo relativamente à acusação e à defesa, em estrita independência, com uma postura de reserva
b-» como o julgamento visa a avaliação do tema tornado objecto processual pela acusação do Ministério Público, se o acusador não conseguir vencer a dúvida do juiz, logrando obter o seu convencimento quanto à tese que lhe apresenta, a consequência é a improcedência da acusação
c-» por ser assim, a essência do princípio in dubio pro reo é ele ser uma consequência do princípio in dubio contra accusatio
d-» é este o conteúdo material do princípio da presunção de inocência: ao julgar a valia de uma acusação, o juiz deve fazê-lo mesmo que o acusado não apresente defesa, ou a defesa seja deficiente: trata-se de fazer triunfar a verdade, impor a justiça e não validar uma aparência artificial gerada como efeito perverso do processo
e-» é por isso que inexiste ónus processual, conceito do Direito Privado que o processo penal repele, por ser antagónico com a sua estrutura e com as suas finalidades e é por tal que existe o direito ao silêncio com o sentido estrito da inexistência de um dever de prestar declarações
f-» a presunção de inocência é um dos meios compensatórios que são garantidos ao arguido para compensar, por via niveladora, a desigualdade material em que se encontra face aos meios do acusador, numa parificação dialética que é a essência da tendencial igualdade de armas
g-» a regra segundo a qual a prova necessária para legitimar uma condenação tem de ser aquela que vença a dúvida razoável é, por um lado um dos meios compensatórios inerentes à garantia da igualdade de armas, ao conferir ao arguido o benefício prévio da dúvida
h-» a prova indiciária, suficiente para as fases anteriores ao julgamento, as de inquérito e instrução, assentam na mera presunção da existência de um ilícito e de uma participação quanto à sua prática
i-» condenar com base em prova meramente indiciária é condenar com base numa presunção, é condenar contra a presunção de inocência
j-» ora uma presunção não pode vencer outra, porque ambas assentam em lógicas estritamente hipotéticas
k-» uma justiça que parta do pressuposto que é exigível uma defesa técnica, que enfrente a substância a forma e os formalismos e assim legitime, como se justas fossem, condenações com base em deficiência formais na defesa, não é digna desse nome
l-» a presunção de inocência e a regra do in dubio pro reo, este enquanto método de avaliação do mérito de uma acusação, integram a categoria de questão de Direito, susceptível de recurso de revista e apenas como avaliação sobre a prova é que se caracterizam como questão de facto
m-» o in dubio pro reo não é método de interpretação de normas legais, pois nesse domínio o princípio mestre é o favorabilia amplianda odiosa restringenda
n -» o que enunciei são princípios programáticos, regras injuntivas e garantias constitucionais, como tal de aplicação directa
o-» a lei ordinária e a prática judiciária, quando não dos OPC’s, podem frustrar, porém, o seu âmbito e alcance
2. Agora, enfim, a relação desses conceitos e princípios no contexto dos megaprocessos, eis, em breve catálogo, as características que lhes são ínsitas e põem em causa a presunção de inocência:
a-» pela acumulação massiva de prova, geram uma convicção de suficiência probatória no sentido da incriminação, originando uma suposição de provável culpa, potenciando o encargo da contraprova até para vencer compreensíveis falhas por parte do tribunal no que respeita ao total domínio do processo
b-» pela sua dimensão gigantesca, geram sobre a defesa um encargo desproporcionado face aos meios de que dispôs a acusação pública para os organizar, sendo que os prazos legais de prorrogação para o requerimento de instrução e contestação não se aproximam, num mínimo sequer, do tempo congruente com um conhecimento capaz dos autos
c-» a duração das fases inerentes à produção oral de prova, em instrução e julgamento, lesam directamente a possibilidade de assistência, em regime de permanência, de um advogado de livre escolha do arguido, salvo para os abonados com meios financeiros que lhes permitam contratar equipas de advogados que se substituam quando da colisão de agendas
d-» ao associarem, como seu mecanismo cautelar conatural o arresto de bens, privam os arguidos, mesmo os mais abonados, de meios para custearem advogado de sua livre escolha, atingindo a tendencial igualdade de armas
e-» pela sua invulgaridade e porque conaturalmente envolvem, como arguidos, figuras relevantes da sociedade, tornam-se mediáticos, o que gera, como seu efeito colateral, o julgamento na praça pública, forma de degradação cívica, quando não de pressão sobre o tribunal, mas em qualquer caso a gerar uma presunção sociológica de culpa
f-» ao perdurarem no tempo, abrem a via à especulação, sempre presente, quanto a não ser mera coincidência a simultaneidade de certos momentos processuais com certos factos da vida social, económica e sobretudo política, o que gera a imagem da justiça como instrumental do poder político, ou detentora de uma agenda política própria, suspeitas altamente desprestigiantes, mesmo quando desmentidas
g-» paradoxalmente, quando deviam supor, como seu efeito, uma sobrecarga de prova mais do que suficiente para formar a convicção do tribunal, acabam, no final, por tornar a prova indiciária como suporte de uma condenação, com base na ideia de que, dado o tipo de crimes que estão em causa e o sofisticado modo de agir dos que nele se envolvem, só aquele tipo de prova garante a formação de uma convicção condenatória
h-» enfim, independentemente do que seja o seu resultado, mesmo que no sentido da absolvição, o megaprocesso, ao tornar-se uma realidade em si, gera todo um cortejo de males irreversíveis, o das medidas coactivas sofridas, o da privação de bens, o da angústia psicológica durante anos quanto à incerteza do resultado, o do ultraje público, o da perda de oportunidades sociais por via do estatuto estigmatizante de arguido, enfim, uma lesão à cidadania.
Concluo: os tribunais criminais julgam seres humanos, não números. O reino da quantidade que está a envenenar os nossos códigos morais, não pode vencer. Uma justiça que se torne estatística, não é justiça.