O tema girou em torno do uso e abuso do processo penal. Recentemente foi suscitado pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça acerca do excesso de meios processuais de que os advogados se socorrem em sede de recursos. Assim centrado, gerou polémica, nem sempre esclarecedora.
Que ideias tentei exprimir nesse encontro, promovido pelo Café dos Direitos e que teve lugar na Livraria Almedina (Saldanha) em Lisboa? Fica aqui um resumo e antes dele uma palavra de gratidão à Dra. Isabel Silva Mendes e ao Dr. Edgar Valles, colegas de profissão que muito estimo, responsáveis pela iniciativa:
Em termos de sistematização do tema:
a-» não há só abuso processual da parte de advogados e focar corporativamente a questão como se fossem apenas estes os prevaricadores não contribui para um debate sereno, nem para encontrar uma solução que enfrente a questão subjacente e ela existe
b-» importa não confundir abuso com o esgotamento dos meios processuais legalmente permitidos na ânsia legítima se achar uma última palavra que reponha o que se tem por solução justa ou situações humanas compreensíveis
c-» os próprios magistrados judiciais, procuradores, órgãos de polícia criminal e oficiais de justiça, quando interessados num processo criminal, e sobretudo quando por ele visados, querem do seu defensor uma actuação que leve ao exaurimento de todas as possibilidades de fazer sindicar e rever as decisões, as substantivas e as processuais que os afectem, incluindo as de constitucionalidade
Em termos de colocação do tema, o abuso é conjecturável como realidade pensável quando:
a-» se organizam megaprocessos que são verdadeira justiça de classe, face aos quais só os abonados financeiramente podem encontrar advogado de sua livre escolha que os defenda com presença permanente em todos os actos processuais relevantes, incluindo audiências que podem demorar meses
b-» se arrastam os inquéritos por vezes ao limite do prazo de prescrição do crime, quando a lei define expressamente os prazos de inquérito como «máximos» e nada me convence que sejam ordenadores só porque, não havendo sanção para o desrespeito desses máximos, a impunidade legitima o incumprimento
c-» se recorta artificialmente o objecto do processo, seleccionando, numa lógica de princípio de oportunidade, uns investigados como arguidos e outros como testemunhas ou se isola da realidade o que passa a configurar-se como uma verdade conveniente, aquela que os juízes estão adstritos a julgar, escapando-lhes a realidade subtraída
d-» se organiza o acervo documental dos autos em termos de incrementar a dificuldade da sua consulta a quem não tenha ao dispor o índice que oriente a percepção, tudo acrescido por uma deficiente técnica de autuação em que o relevante está misturado com o expediente ou em que a prova produzida oralmente está consignada em audio digital não imediatamente disponível ou ainda quando dos autos principais não consta a prova mais relevante que é levada a apensos cuja consulta é dificultada
e-» se decreta o arresto dos bens do arguido impossibilitando-o de ter meios financeiros para custear advogado de sua livre escolha
f-» a prisão prisão preventiva é decretada a benefício da investigação na medida em que gere no preso a vontade de convergir com a linha de rumo da investigação, corroborando-a
g-» a detenção para sujeição a juiz não for concomitante a uma organização probatória que permita celeridade processual nos interrogatórios e decisão sobre a medida de coactiva
h-» essa detenção para sujeição a juiz visar uma pressão psicológica sobre o detido, fazendo-o optar por declarações auto-incriminatórias por temer, naquele estado de cativo, o exercício do direito ao silêncio
i-» o benefício da irrecorribilidade dos actos instrutórios legitimar uma prática de indeferimento do que, a haver recurso, seria ponderado sobre diversa perspectiva, o mesmo se diga quanto à irrecorribilidade da decisão instrutória irrecorrível quando obediente à acusação pública
j-» o agendamento do julgamento com várias sessões por semana, inviabilizando a presença do defensor de livre escolha, gere, como seu efeito, de novo, a justiça de classe, só permitindo uma defesa efectiva a quem, arguido ou assistente, possa ter meios financeiros para custear uma equipa de advogados que se substituam e todos eles em permanente dedicação para poderem assegurar adequadamente essa substituição
k-» o colectivo de julgamento não funcione como tal, numa lógica de mobilização de todos para um veredicto com participação efectiva
l-» a medida da pena não seja intencionalmente colocada naquela medida que impeça o recurso para o Supremo de Justiça
m-» os critérios formais no que respeita à formulação das conclusões do recurso não impeçam a recorribilidade da substância por causa do formalismo
n-» o recurso da matéria de facto não seja postergado como sobrecarga inadequada para um tribunal de segunda instância
o-» o direito ao recurso para o Tribunal Constitucional encontre, enfim, forma de ser respeitado e não sistematicamente cerceado por critérios ultra formais no que se refere ao modo de suscitar o tema recorrido
É certo que há advogados que fazem uso anómalo do processo. Focá-los como culpados únicos é, no mínimo, um excesso argumentativo.