Não é a minha área usual de actuação jurídica, mas não poderia deixar de corresponder à gentileza do convite formulado pela Delegação de Viseu da Ordem dos Advogados, através da colega Rita Brazete, para intervir, com uma alocução sobre a proibição de externalização e sua tutela, o que ocorreu no colóquio que teve lugar a 7 de Julho do corrente e em que participaram, a justo título, Milena Rouxinol, sobre tema do período experimental e Miguel Cid Cébrian, sobre a reforma laboral espanhola. O tema em debate foi a denominada Agenda do Trabalho Digno. Hesitei em divulgar o levei a público. Em suma e com o pedido de compreensão generosa dos especialistas, foi o que segue.
A Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril, rectificada a 29 de Maio, veio alterar o Código do Trabalho e no que ao tema agora em análise respeita, aditando-lhe dois artigos, numerados como 338-A e 498º-A, e alterando a redacção do artigo 10º [basicamente para o que interessa o n.º 3] do mesmo, tudo a ficar com a seguinte redacção.
Artigo 10.º
Situações equiparadas
3 – Sem prejuízo do disposto no número anterior, o prestador de trabalho pode assegurar temporariamente a atividade através de terceiros em caso de nascimento, adoção ou assistência a filho ou neto, amamentação e aleitação, interrupção voluntária ou risco clínico durante a gravidez, pelo período de tempo das correspondentes licenças ou dispensas previstas no presente Código.
Artigo 338.º-A
Proibição do recurso à terceirização de serviços
1 – Não é permitido recorrer à aquisição de serviços externos a entidade terceira para satisfação de necessidades que foram asseguradas por trabalhador cujo contrato tenha cessado nos 12 meses anteriores por despedimento coletivo ou despedimento por extinção de posto de trabalho.
2 – A violação do disposto no número anterior constitui contraordenação muito grave imputável ao beneficiário da aquisição de serviços.
O segundo refere-se à tutela dos trabalhadores no caso de externalização de serviços que integra o objecto social da empresa que os adquire quando tais serviços integrarem o objecto social da empresa adquirente; o primeiro rege o caso de haver um posto de trabalho que haja cessado por via de despedimento colectivo ou extinção do mesmo, ficando a empresa proibida durante doze meses de adquirir no exterior serviços que eram assegurados pelo trabalhador despedido ou que ocupava o posto em causa.
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O tema do outsourcing tem de ser perspectivado não de acordo com uma visão estreita, antes pluridimensional, valorando as circunstâncias concretas que ocorram no caso e assim diferenciando situações-tipo que podem ocorrer, nomeadamente:
a-» tratar-se de assegurar a prestação de serviços periféricos, instrumentais ou especializados, de algum modo relevantes para o funcionamento da empresa
b-» tratar-se de situação que possa não implicar necessariamente despedimento dos trabalhadores em serviço na empresa
A cumulação dos dois vectores, assim configurados, não parece gerar problema, porquanto o que está em causa é a não geração de novos postos de trabalho na própria empresa, ao ocorrer mera alocação dos serviços em causa a uma entidade terceira, supostamente mais apta à sua prestação.
Tema controverso começa por ser quando se tratar de recolocação de trabalhadores em novos postos de trabalho, mantendo-lhes o vínculo laboral, mas adjudicando o serviço que eles levavam a cabo a uma entidade terceira; e mais controversa é a situação quando essa “terceirização” for atribuída na sequência de um despedimento, ou de natureza colectiva ou pela extinção do posto de trabalho.
Vista a lei, verifica-se que fica aberta a possibilidade de haver lugar a despedimento individual legal, por acordo ou com a sujeição às condições de legalidade que o permitam e, subsequentemente, a empresa contratar para a prestação dos serviços, que aquele trabalhador assegurava um outro trabalhador ou adjudicar a sua efectivação a uma entidade terceira.
O que é vedado, em primeira linha, é a externalização na sequência de despedimento colectivo, tal como a lei o define no artigo 359º do Código do Trabalho, ou seja, quando se verifica:
«[…] a cessação de contratos de trabalho promovida pelo empregador e operada simultânea ou sucessivamente no período de três meses, abrangendo, pelo menos, dois ou cinco trabalhadores, conforme se trate, respectivamente, de microempresa ou de pequena empresa, por um lado, ou de média ou grande empresa, por outro, sempre que aquela ocorrência se fundamente em encerramento de uma ou várias secções ou estrutura equivalente ou redução do número de trabalhadores determinada por motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos» [1].
E do mesmo modo a proibição de externalização subsiste sendo consequente a uma extinção do posto de trabalho, nos termos em que isso está admitido pelo artigo 367º do mesmo Código, quando assim prevê:
«1 – Considera-se despedimento por extinção de posto de trabalho a cessação de contrato de trabalho promovida pelo empregador e fundamentada nessa extinção, quando esta seja devida a motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos, relativos à empresa.
«2 – Entende-se por motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos os como tal referidos no n.º 2 do artigo 359.º»
Numa vertente puramente interpretativa, a fórmula legislativa faz surgir várias dúvidas, de que enunciarei as seguintes duas, por me parecerem, de imediato, as mais evidentes:
a-» sendo pressuposto ter havido despedimento colectivo, o que significa de um número plural de trabalhadores, não pode haver qualquer terciarização de qualquer posto de trabalho dos que integraram o núcleo de actividade em que o referido despedimento se verificou, um único que seja?
b-» e no caso de a extinção do posto de trabalho ocorrer no âmbito de uma reestruturação empresarial em que aquela função se torne obsoleta ou redundante e haja uma realocação do serviço em causa para uma variante funcional diversa, mantém-se a proibição de externalização?
Independentemente destas particularidades interpretativas, que são, aliás, relevantes, facto é que, no seu conspecto geral, estão em causa valores com assento constitucional, por um lado, a igualdade [artigo 13º], liberdade de iniciativa económica [artigo 61º, n.º 1] e, reflexamente, a propriedade privada [artigo 62º, n.º 1] e por outro, do lado dos trabalhadores, o direito ao trabalho e segurança do emprego [artigo 58º] e é nesse ângulo que o tema do outsourcing tem sido considerado.
Estes valores são abstractamente aptos a conflituar entre si, mas relativamente aos quais haverá de encontrar-se um critério de concordância prática, pois é este o critério de harmonização das normas constitucionais garantísticas.
Por um lado, do lado empregador, estará em causa a autonomia privada, nomeadamente a contratual, que é o fundamento da iniciativa privada.
Sucede, porém, que aquela liberdade, e a autonomia que ela pressupõe não são valores absolutos, estando sujeitos ao princípio dito da reserva legal de conformação, para usar uma expressão de conteúdo normativo, sufragada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente no que exige para garantir dois valores igualmente relevantes:
a-» um nível proporcionado de liberdade da parte trabalhadora, contraente a qual não pode ficar à mercê de um excesso de liberdade do contratante empregador
b-» e, consequentemente, um tendencial nivelamento das posições de cada um, apenas sendo admissível uma diferenciação que tenha fundamento substancial de distinção.
Posta a questão nestes precisos termos, poderemos considerar como tema passível de reflexão saber se os interesses subjacentes ao funcionamento de uma empresa não deverão ter prevalência sobre os interesses e direitos de cunho individual, no que se engloba o direito ao trabalho, porquanto a relevância do funcionamento empresarial decorre:
a-» por um lado, da vertente em que a mesma é apta a gerar proveitos, não apenas para os seus sócios ou accionistas, mas também para os stakeholders, seja todos os impactados pela sua actividade operacional e pelos seus resultados
b-» e, assim, também os demais trabalhadores, cuja subsistência pode decorrer do seu funcionamento em condições de rentabilidade, e que serão afectados se não houver racionalidade da respectiva gestão, e assim, pela opção que se mostre mais adequada em termos da opção pela internalização/externalização.
Há, pois, que fazer actuar os princípios que são basilares para uma avaliação da tutela constitucional dos interesses em presença, convocando nomeadamente princípios como:
a-» a necessidade, que fulminaria uma proibição legal, no caso a “terceirização”, que se mostrasse desligada de ligação a um interesse legítimo a que a Constituição desse guarida
b-» a adequação, seja o tratar-se de uma restrição sem nexo de ligação eficaz à tutela de valores constitucionais, em nome dos quais tenha sido erigido
c-» e, enfim, nos termos vistos, o da proporcionalidade, ou seja, sem sacrifício relativamente a valores que tenham igualmente assento constitucional.
Tudo isto ponderado, há uma reflexão que se torna obrigatória, em várias vertentes.
A primeira, consiste em saber se a previsão legal de proibição de terciarização é necessária como meio adequado a prevenir o despedimento colectivo ou a extinção do posto de trabalho: é duvidoso que essa necessidade ocorra, em termos de indispensabilidade, porquanto não estará demonstrada a prévia excussão de outros meios, os quais permitam que esse desiderato seja alcançado.
A segunda, atinente à adequação encontra resposta igualmente duvidosa, precisamente pela mesma razão de não adensar os requisitos de tais institutos jurídicos, o do despedimento colectivo e o da extinção do posto de trabalho, exasperando-os de modo a torná-los mais rígidos e, como tal, de uso mais controlado.
A mais relevante, em meu entender, é a reflexão em termos da avaliação da proporcionalidade da proibição em causa, o que exige o alargamento das considerações que devem ser convocadas para o efeito. E assim:
a-» o despedimento colectivo e a cessação da relação laboral por extinção do posto de trabalho é algo que a lei prevê, desde que verificados os pressupostos de admissibilidade, respectivamente nos artigos 359º e 367º do Código do Trabalho
b-» a proibição de externalização, não incide sobre os pressupostos de admissibilidade de qualquer uma destas figuras jurídicas, tem antes mera natureza dissuasória, por via punitiva
Ora a medida proibitiva a que nos referimos seria proporcional se estivesse em causa enfrentar despedimentos colectivos ou extinções de postos de trabalho dolosa, e direi, fraudulentamente orientados a gerar a cessação de relações laborais, fora de uma gestão racional, equilibrado visando uma ponderada melhor eficácia do funcionamento da unidade empresarial.
O que já se afigura um excesso é decretar essa proibição de outsourcing quando a externalização seja subsequente a uma política empresarial de mais adequada gestão, visando, ao limite, garantir a sobrevivência da empresa, ou, ao menos, a sua melhor rentabilidade com benefício para a subsistência de postos de trabalho e os benefícios, já referidos, para todos os stakeholders.
É nesta extensão ilimitada da proibição que se me afigura haver violação do princípio do excesso.
É que a lei já configurou requisitos apertados à viabilidade daquelas duas formas de extinção da relação laboral, pelo que a sanção prevista pelo novo artigo 338º-A é um plus excessivo e que melhor seria substituído pela estrita regulamentação dos pressupostos do despedimento colectivo e da extinção do posto de trabalho.
Enfim, também os valores da autonomia privada, com a consequente liberdade de autodeterminação, nomeadamente no que se refere à autonomia gestionária empresarial, que está confiada a quem tiver poderes de direcção da empresa, está posta directamente em crise e com a isso a liberdade de iniciativa privada que tem assento no artigo 61º, n.º 1 da Constituição, o qual estatui:
«A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral».
Ora não é do interesse geral estabelecer uma medida punitiva com este perfil, a qual, ao sancionar como contraordenação muito grave, a conduta em causa, leva à supressão de uma medida de contratação externa que pode ser, ao limite, a única adequada a garantir uma gestão eficaz, racional, produtiva, geradora de proveitos e quantas vezes o que resta para tentar a sobrevivência empresarial.
Não há iniciativa privada sem liberdade negocial e de contratação e sem autonomia gestionária.
Mas é sobretudo o argumento de que a proibição da terciarização lesa estes valores atinentes à iniciativa privada sem que actue directamente sobre o direito ao trabalho que, creio, deve ser convocado para a análise do tema: é que, estamos ante uma perda de postos de trabalho que a lei permite, pois o pressuposto da proibição de externalização é ser subsequente a um despedimento colectivo ou extinção do posto de trabalho aceites como legais e que o outsourcing não coloca em crise.
Mais: a empresa efectua um despedimento colectivo legal, ou uma legal extinção de posto de trabalho. Ao ser impedida durante 12 meses de externalizar o serviço, fica privada do que tinha impedida de ter alternativa. Se isto não é abuso, não sei o que possa ser.
E assim, a proibição em causa não tem reflexo direito no direito individual ao trabalho que permita convocar uma proporcionalidade que permitisse salvar a sua conformidade constitucional.
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Diversa é a situação – e com ela termino – em que uma determinada função laboral, confiada a trabalhador de uma empresa, poder ser assegurada por terceiros, nisso incluindo a externalização, nos termos em que tal foi admitida pelo n.º 3 do artigo 10º do Código do Trabalho, com a redacção emergente da citada Lei n.º 13/2023, mas aí, apenas com duração temporal, e em casos específicos como o «caso de nascimento, adoção ou assistência a filho ou neto, amamentação e aleitação, interrupção voluntária ou risco clínico durante a gravidez, pelo período de tempo das correspondentes licenças ou dispensas previstas no presente Código», e isso sem prejuízo do estatuído no número antecedente do mesmo preceito em matéria de definição do que seja dependência económica.
Só que essa possibilidade, temporária seja e circunscrita, nos termos em que foi prevista no artigo 10º citado, não resulta de uma opção que seja conferida ao empregador, de escolha da mera alternativa substitutiva para assegurar o interim em causa, sim de um verdadeiro direito potestativo concedido ao prestador do serviço e, como tal, oponível por forma obrigatória ao empregador, ao qual é negada a possibilidade de escolha livre e autónoma da melhor solução para assegurar a interinidade.
Ora tal significa uma afronta a um valor constitucional estabelecido, nomeadamente a liberdade contratual, o qual fica esvaziado ao sujeitar o empregador a esta situação dita equiparada, sendo que a lei, no caso o artigo 10º que estamos a considerar, define como equiparadas as «situações em que ocorra prestação de trabalho por uma pessoa a outra, sem subordinação jurídica, sempre que o prestador de trabalho deva considerar-se na dependência económica do beneficiário da atividade».
E não se diga que a dita equiparação não faz nascer um novo contrato de trabalho, por ausência de subordinação jurídica do interino ao empregador e, por isso, não haverá uma nova situação com perfil substancial que atente contra valores dignos de relevo constitucional; é que aquilo que está em causa é a ablação da liberdade da parte empregadora no sentido de assegurar o que seja a solução mais adequada face ao perfil funcional e aos objectivos da unidade empresarial, lesão assim à iniciativa privada.
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[1] O número 2 do referido preceito explicita quais os motivos atendíveis para a legitimidade do despedimento colectivo, ao estatuir:
«2 – Para efeitos do disposto no número anterior consideram-se, nomeadamente:
- a) Motivos de mercado – redução da actividade da empresa provocada pela diminuição previsível da procura de bens ou serviços ou impossibilidade superveniente, prática ou legal, de colocar esses bens ou serviços no mercado;
- b) Motivos estruturais – desequilíbrio económico-financeiro, mudança de actividade, reestruturação da organização produtiva ou substituição de produtos dominantes;
- c) Motivos tecnológicos – alterações nas técnicas ou processos de fabrico, automatização de instrumentos de produção, de controlo ou de movimentação de cargas, bem como informatização de serviços ou automatização de meios de comunicação»