Muito interessante, pela conclusão e pela fundamentação o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido a 26.07.2023 [processo n.º 257/23.9YRLSB-A.S1, relator Lopes da Mota, texto integral aqui], pelo qual se decidiu a aplicabilidade ao mandado de detenção europeu do prazo de dez dias para a entrega do detido, sob cominação da sua libertação.
Em causa a circunstância, para alguns impeditiva, de o regime jurídico relativo àquele MDE [Decisão-Quadro («DQ») 2002/584/JAI do Conselho] prever norma legal que não é acolhida no artigo 29º da Lei n.º 65/2003, de #, a qual transpôs aquele instrumento legal europeu. E, a propósito, o acórdão lembra a composição específica do colectivo ao qual na Relação cabe julgar tal matéria, formado por três que não por quatro juízes.
Eis o teor do sumário do aresto citado:
I. Os motivos de «ilegalidade da prisão», que constituem os fundamentos da providência de habeas corpus, de enumeração taxativa, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal (CPP). A prisão é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no artigo 27.º da Constituição e das condições que a lei determinar, em que se inclui a detenção de pessoa contra a qual esteja em curso processo de extradição [n.º 3, al. c)].
II. O mandado de detenção europeu («MDE»), instituído pela Decisão-Quadro («DQ») 2002/584/JAI do Conselho, de 13.6.2002, transposta para o direito interno pela Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, teve como objetivo substituir o sistema formal de extradição multilateral baseado na Convenção Europeia de Extradição de 1957, do Conselho da Europa.
III. Embora a DQ 2002/584 não tenha efeito direto, uma vez que foi adotada com fundamento no antigo terceiro pilar da UE, o seu caráter vinculativo cria, para os tribunais nacionais, aos quais compete aplicar o direito da União, uma obrigação de interpretação conforme do direito nacional, por recurso à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia «TJUE») sobre a interpretação dos atos adotados pelas instituições da União (artigo 267 «TFUE»).
IV. O artigo 29.º da Lei n.º 65/2003 não contém disposição idêntica à do n.º 5 do artigo 23.º da DQ 2002/584/JAI que estabelece que “se, findos os prazos referidos nos n.ºs 2 a 4, a pessoa ainda se encontrar detida, deve ser posta em liberdade”, o que poderia sugerir que, decorridos o prazo de 10 dias a contar do dia em que a decisão de execução do MDE se tornou definitiva (n.º 2 do preceito) ou os prazos fixados nos termos dos n.ºs 3 e 4, a pessoa procurada poderia ser mantida em detenção, em qualquer circunstância, para além do termo desses prazos.
V. Tal conclusão não é, porém, admissível, devendo, para o efeito, ter-se em conta o primado do direito da União, o princípio de interpretação conforme e a jurisprudência do TJUE, bem como o disposto no artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, que remete diretamente para direito da União ao dispor que o MDE é executado «em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI».
VI. A decisão de suspender a entrega da pessoa procurada para que seja sujeita a procedimento penal ou para que possa cumprir a pena em Portugal ou de, em lugar de diferir a entrega, entregar temporariamente a pessoa procurada ao Estado de emissão, nos termos do artigo 31.º da Lei n.º 65/2003, deve ser tomada pela autoridade judiciária de execução.
VII. Quando tal decisão não tiver sido tomada por essa autoridade e os prazos previstos no artigo 23.º, n.ºs 2 a 4, da DQ 2002/584 (a que corresponde o artigo 29.º, n.ºs 3 e 4, da Lei 65/2003) tiverem terminado, a pessoa que é objeto do MDE deve ser posta em liberdade, em conformidade com o artigo 23.º, n.º 5, da mesma decisão‑quadro (acórdão do TJUE de 08.12.2022, no processo C‑492/22 PPU, CJ).
VIII. O julgamento do processo de execução do MDE é da competência da secção criminal do tribunal da relação (artigo 15.º da Lei 65/2003), à qual, funcionando com três juízes (artigo 12.º, n.º 4, do CPP), compete proferir decisão através de acórdão (artigo 97.º, n.ºs 1 e 2, do CPP) sobre a execução do MDE (artigo 22.º da Lei n.º 65/2003), e, então, proferida essa decisão, decidir se é caso de suspender a entrega da pessoa procurada, ou, em vez disso, entregar temporariamente a pessoa procurada ao Estado de emissão, nos termos do artigo 31.º da Lei n.º 65/2003.
IX. O acórdão proferido nada disse sobre o diferimento da entrega nem sobre a entrega temporária, nos termos deste preceito, e não consta que tivesse ocorrido motivo de força maior que impedisse a entrega em dez dias ou que a entrega devesse ser suspensa por motivos humanitários (artigo 29.º, n.ºs 3 e 4, da Lei 65/2003)».