O tema do branqueamento de capitais mantém actualidade e é pertinente a vários títulos. Logo o primeiro como ensinamento.
Quando em 2017 se entendeu, ante a iniciativa legislativa da transposição da Directiva Europeia Diretiva (UE) n.º 2015/849 que a legislação portuguesa adoptada para o efeito, no caso a Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto, já não iria ser aplicada com complacência por parte das entidades incumbidas da prevenção e repressão do branqueamento de capitais, nisso incluindo os advogados, surgiu um clamor de protesto na classe. Animados de são propósito, não ponho isso em dúvida, fundados no que tinham como adequada e intransigente defesa do segredo profissional, sem o qual não há advocacia livre, elevaram-se vozes que fariam crer que essa legislação não poderia subsistir pois atentava contra esse sigilo e, por essa via, contra a própria profissão.
Mas é facto que esta mencionada Directiva de 2015 estava transposta para o nosso ordenamento jurídico e a Lei que em 2017 a transpôs manteve-se em vigor. E o clamor entrou em surdina.
Conseguiu-se, entretanto, nessa matéria em que tudo parecia perdido, um benefício, através de um processo negocial levado a cabo pela Ordem dos Advogados com o DCIAP, do qual resultou um projecto de Regulamento para a advocacia, que foi recebido então com injusta incompreensão, mas que acabaria por ser aprovado essencialmente nos termos substanciais em que havia sido delineado.
Incompreensão, primeiro, porque se propôs levá-lo à aprovação de uma Assembleia Geral da Ordem, mau grado ser acto normativo que poderia ser aprovado pelo Conselho Geral, de modo a fazer triunfar critérios de transparência e de participação democrática, o que foi entendido por alguns, em indevido processo de intenções, como um acto de alijamento de responsabilidades. Facto é que o normativo regulamentar em causa, que hoje vigora, acabaria por ser aprovado em Assembleia Geral.
Incompreensão, depois, porque se acusou o projecto de Regulamento de derrogar a lei, quando aquilo de que se tratava era, e nisso o DCIAP compreendeu e aquiesceu, de permitir que o Bastonário não se limitasse a ser um mero transmissor dos reportes dos colegas «de forma pronta e sem filtragem» [como resulta da letra do artigo 79º da citada Lei n.º 83/2017], sim que lhe coubesse uma definição de concordância prática entre o dever legal de comunicação de operações suspeitas e o dever legal de salvaguarda do segredo profissional, não se tratando de derrogação de lei, sim, de recuperação do espírito da Directiva, tal como a mesma o expressava no seu preâmbulo e o legislador nacional não tinha consagrado, mas teria de ser acautelado.
Ou seja, se hoje temos alguma defesa e definição de zonas de protecção, isso deve-se a ter imperado um clima de diálogo construtivo.
Não pretendo, com estas duas alusões, abrir polémica, apenas relatar como foi que sucedeu, envolvido que estive pessoalmente, a liderar uma pequena equipa de colegas, mandatados pelo Conselho Geral de então, para que o resultado fosse possível; e concluir que os problemas que hoje se enfrentam no quadro do estatuto das ordens profissionais já tinha aí um esboço claro de presença.
É que já então se suscitava uma questão, na aparência técnica, mas, afinal, carregada de substância: saber se o advogado, ao praticar actos próprios da profissão, tal como a lei os definia e ainda hoje define, estaria isento dos deveres inerentes às leis de prevenção do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo e, como tal, protegido pelo, assim intransponível, segredo profissional; ou seja, qual afinal o perímetro da profissão.
Ou seja, geometricamente estava já então em causa saber se o círculo dos actos próprios seria coincidente com o da exclusão dos deveres inerentes à legislação sobre branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo.
A resposta só poderia ser negativa, pois comparando ambos os corpos normativos, o respeitante à definição dos actos próprios dos advogados, tal como definido pela Lei n.º 49/2004 e o que regulava e regula ainda o branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, a referida Lei n.º 83/2017, verifica-se que o primeiro é substancialmente mais amplo, ou seja, há toda uma zona de actos próprios em que o advogado não está abrangido pela excepção às regras imperativas relativas ao branqueamento e em que, portanto, o segredo da profissão está directamente em causa.
Actos próprios dos advogadosArtigos 5º e 6º da Lei 49/2004 |
Actos excluídos para efeito de BCDTLei 83/2017 e Regulamento OA |
Mandato forense |
Patrocínio forense e representação judiciária independentemente da jurisdição onde se pratiquem ou devam ser praticados os actos processuais, incluindo as comissões ou tribunais arbitrais |
Consulta jurídica |
Idem e emissão de pareceres |
Informações obtidas do cliente ou de terceiros visando a prática dos actos antecedentes, antes, durante ou após a intervenção em processos mediante a representação judiciária ou patrocínio forense |
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Numa interpretação restrita dos termos «mandato forense», «representação judiciária» e «jurisdição», estarão incluídos no âmbito dos deveres |
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Actos incluídos para efeito de BCDTLei 83/2017 e Regulamento OA |
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Casos previstos no artigo 4º da Lei 83/2017 |
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Contratos |
Situação abrangida quando se refiram às operações previstas no artigo 4º |
Actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e notários |
Abrangidos quando se refiram às operações previstas no artigo 4º |
Ante este quadro comparativo torna-se perceptível que só a advocacia forense e a que inclui a consulta jurídica estão excluídas dos deveres inerentes à legislação sobre branqueamento de capitais e vêm, assim, protegido o segredo profissional.
Fica, pois, claro que desde há muito nos encontramos ante duas dinâmicas europeias convergentes:
a-» por um lado, a tendência orientada a acantonar a advocacia ao patrocínio forense e à consulta jurídica e conferir-lhe aí a protecção exigida pelo segredo profissional pela isenção ante as regras inerentes à prevenção do branqueamento de capitais
b-» por outro, e a isso voltarei, a recente orientação política no sentido de abrir às leis da concorrência tudo o que não seja a advocacia forense.
Trata-se, como já me permiti comentar publicamente, de uma reorganização do mercado advocatício e dos serviços jurídicos, em nome do argumento da protecção dos consumidores.
A compreensão da situação e da arquitectura que está inelutavelmente a assumir exige, antes de mais, que nos entendamos sobre o perfil do que se convencionou denominar como advocacia, afinal uma realidade compósita.
No que se refere às pessoas e estruturas que actuam na advocacia, esta é actualmente uma realidade plural, a exigir um inquérito que permita saber quem somos, afinal, pois o último inquérito feito à classe data dos anos 60 do século vinte; de outro modo há o risco de os discursos sobre a advocacia serem só sobre uma certa advocacia ou, ao limite, sobre nenhuma advocacia concreta.
Assim, por um lado, há uma advocacia actuada como indústria de prestação de serviços, estruturada em forma societária, com filosofia empresarial capitalista, colhendo os seus réditos pelo critério da aferição horária [o time sheetI] e sujeita, como qualquer empresa, ao rating do chamado PPP [profit per partner, lucro por sócio] ou, num segundo critério de avaliação da rentabilidade da mão de obra ao PPL [profit per lawyer, lucro por advogado].
Que este modelo organizacional tenha futuro, que, para além de corresponder ao mais adequado para as necessidades dos clientes ou dos advogados não sócios que integram o sistema, que ele garanta de modo eficaz a tutela do segredo profissional, devido à volatilidade dos seus membros, tudo isso é passível de discussão, actualmente ausente, diga-se, sendo que a realidade a que assistimos relativamente a elas é a da sua transformação qualitativa no sentido da concentração das grandes sociedades, à custa da fusão de outras sociedades de menor dimensão.
E neste aspecto, diga-se de passagem, as exigências da legislação sobre a prevenção do branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo e bem assim a outra sobre protecção de dados, com tudo quanto isso reclama de meios organizacionais e humanos, e custos, para uma conformidade na matéria, ajudam à concentração, porquanto, ao limite, só os grandes escritórios estão apetrechados com os meios humanos e tecnológicos para cumprir as determinações normativas correspondentes.
Trata-se, aliás, de uma transposição para esta nossa profissão do que se está a passar com o sistema bancário e das entidades financeiras em que a concentração pelas fusões e aquisições está na ordem do dia.
Por outro lado, existe, e com larguíssima expressão, uma advocacia de base individual ou organizada em pequenas unidades, por vezes societárias, outras vezes de mera partilha de encargos, aquilo a que, retomando um termo do mercado de venda a retalho, se denominam as boutiques de advocacia, a qual é numericamente a mais expressiva e não apenas fora de Lisboa e Porto.
Para estes pequenos escritórios, muitos vivendo, aliás, no limiar da sobrevivência financeira, as exigências de compliance a nível, por um lado, de prevenção do branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo, por um lado, e da protecção de dados, por outro, implica despesas para as quais não têm meios financeiros suficientes, nem capacidade de os repercutir, como custos, nos honorários que praticam.
Mas não é só na dimensão da forma de exercício da profissão que se tem assistido a uma evolução da advocacia: é também o que se passa quanto ao domínio material das realidades da vida sobre a qual ela incide.
Tempo vai em que a actuação forense era a matriz caraterística e definidora da advocacia, em que a “alma da toga” qualificava o ser-se advogados, e tempo vai em que tudo quanto fosse trabalho com natureza jurídica só poderia ser efectuado por advogados ou, numa outra vertente, por solicitadores.
Aquilo a que assistimos é ao assenhoreamento pelas consultoras e outras entidades públicas, das tarefas ainda há pouco desempenhadas por advogados.
Trata-se, aliás, de tendência internacional, não sendo por acaso que a projecção das mesmas em Portugal tem como ponta de lança sociedades que à sua natureza como consultoras juntam também – em lógica amiúde de conflito de interesses – a função de auditoras.
A somar a esta evolução acresce a legislação europeia sobre a concorrência que, animada pela OCDE, veio orientada a projectar os seus efeitos no domínio da advocacia e para a qual só recentemente se ganhou consciência.
Numa conferência efectuada em 2020, no âmbito da nossa Ordem, referi que tal legislação:
«[…] começa a enfrentar – e em breve a destruir – o núcleo protector dos denominados actos próprios e como tal específicos e assim privativos de advogados, circunscrevendo-o a limites mínimos […], tudo em nome de uma política do que se entende serem práticas restritivas da concorrência».
E já a 23 de Agosto de 2018, no meu espaço jurídico Patologia Social divulguei o plano de acção que a Autoridade da Concorrência havia anunciado, para a execução das as 765 recomendações da OCDE, as quais [cito] visavam «dotar o setor dos transportes e as profissões liberais de ambientes mais concorrenciais, eliminando disposições que restringem a concorrência, outras que representam encargos administrativos desproporcionais ou ainda disposições obsoletas» e proclamavam que iriam trazer «benefícios estimados em cerca de 380 milhões de euros anuais para a economia portuguesa».
No âmbito das profissões liberais, as recomendações em causa passavam pela abertura a profissionais com diplomas universitários noutras áreas, a eliminação de restrições à propriedade, como nas profissões jurídicas, a abolição de restrições à multidisciplinaridade em sociedades, entre outras, igualmente significativas.
O que era aviso premonitório, que julgo não ter tido qualquer eco, é hoje realidade presente e suponho, com profunda consternação, que já será tarde demais para se delinear uma estratégia que a enfrente.
Sendo este o panorama na advocacia, vejamos agora, sempre de modo esquemático, o que se passa em matéria de legislação visando a prevenção do branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo.
A primeira tendência que descortinamos é a exasperação legislativa, quer em termos de quantidade de normativos, quer de exigências regulamentares colocadas ao sector, que fez a sua aparição nos últimos anos com incidência a partir do já longínquo ano de 2005.
Data desse ano a Directiva europeia n.º 2005/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, que, abrangendo os notários e os membros de outras profissões jurídicas independentes, incluiu os advogados no âmbito dos obrigados ao cumprimento das normas legais vigentes na matéria, com exclusão da consultoria jurídica, nisso abrangendo «as informações obtidas antes, durante ou após um processo judicial ou aquando da apreciação da situação jurídica do cliente».
Eis o que decorria do ponto 20 do referido instrumento normativo:
«Enquanto membros independentes de profissões que prestam consulta jurídica legalmente reconhecidas e controladas, tais como os advogados, estiverem a determinar a situação jurídica de clientes ou a representá-los em juízo, não seria adequado impor-lhes, ao abrigo da presente directiva, a obrigação de comunicarem, em relação a essas actividades, suspeitas relativas a operações de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo. Devem estar isentas de qualquer obrigação de comunicação as informações obtidas antes, durante ou após um processo judicial ou aquando da apreciação da situação jurídica do cliente. Por conseguinte, a consultoria jurídica continua a estar sujeita à obrigação de segredo profissional, salvo se o consultor jurídico participar em actividades de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, se prestar consulta jurídica para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo ou se o advogado estiver ciente de que o cliente solicita os seus serviços para esses efeitos.»
Mas mais, a evidenciar que o território da advocacia era, já então, foco e tema privilegiado de acção no domínio da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, já nessa Directiva se previa um acompanhamento do que se passasse no sector, como decorre do artigo 42º da mesma:
«Até 15 de Dezembro de 2009 e, posteriormente, pelo menos de três em três anos, a Comissão deve elaborar um relatório sobre a execução da presente directiva e apresentá-lo ao Parlamento Europeu e ao Conselho. No primeiro destes relatórios, a Comissão deve incluir um exame específico do tratamento dado aos advogados e outros membros de profissões jurídicas independentes.»
Ora essa legislação europeia foi transposta para a legislação portuguesa, através da Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho, a qual, no seu artigo 4º, alínea g), já abrangia expressamente entre os vinculados ao dever de inerentes à prevenção do branqueamento de capitais os «notários, conservadores de registos, advogados, solicitadores e outros profissionais independentes, constituídos em sociedade ou em prática individual, que intervenham ou assistam, por conta de um cliente ou noutras circunstâncias, em operações».
Sucede que esse corpo legislativo foi ignorado pelos seus destinatários e assim se viveu até à Directiva de 2015 tardiamente transposta para o Direito interno em 2017.
Só que a partir de então tornou-se evidente que era inviável manter-se o incumprimento pelos advogados do que era lei e em breve as autoridades incumbidas da execução da legislação sobre branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo não manteriam a posição de passividade. O tema das buscas a escritórios de advogados já indiciava esse novo panorama.
Os tempos delineavam-se, pois, como de agravamento da situação dos advogados.
Claramente a tónica dessa legislação europeia vinha progressivamente a assentar no carácter meramente relativo do segredo profissional de advogado enquanto instrumento de tutela dos valores de ordem pública que são inerentes à profissão e garantia, assim, do Estado de Direito, com salvaguarda, apesar disso, da zona da consultoria jurídico naquele sentido amplo que se referiu; e fazia-o, por um lado, através do assoreamento da legislação sobre branqueamento de capitais, por outro pela redefinição do que sejam actos próprios dos advogados.
Se olharmos para as Directivas de 2005 e 2015 sobre branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo e o modo como foram transpostas para o nosso ordenamento legal, e nomeadamente se cotejarmos o teor da Lei n.º 83/2017, verificamos que, se é verdade que o segredo profissional dos advogados está previsto no preâmbulo da mesma, a verdade é que nos seus normativos vinga a quase ausência de previsão que o torne como limite às exigências de compliance, pois, pelo contrário, muitas delas estão delineadas como se tal segredo dos advogados não existisse sequer.
Veja-se, porquanto elucidativo, o artigo 56º dessa Lei n.º 83/2017, que efectuou a transposição das penúltimas Directivas comunitárias:
«1 – As entidades obrigadas [no caso também os advogados] disponibilizam todas as informações, todos os documentos e os demais elementos necessários ao integral cumprimento dos deveres enumerados nos artigos 43.º, 45.º, 47.º e 53.º [afinal os deveres essenciais na matéria], ainda que sujeitos a qualquer dever de segredo, imposto por via legislativa, regulamentar ou contratual.
«2 – A disponibilização de boa-fé, pelas entidades obrigadas, das informações, dos documentos e dos demais elementos referidos no número anterior não constitui violação de qualquer dever de segredo imposto por via legislativa, regulamentar ou contratual, nem implica responsabilidade de qualquer tipo, mesmo quando se verifique um desconhecimento da concreta atividade criminosa ou esta não tenha efetivamente ocorrido.»
Ora foi nesse contexto adverso que se aprovou o Regulamento que a Ordem tem hoje em vigor e que acima se fez referência.
O processo da sua elaboração relevou quatro circunstâncias:
a-» as imperfeições de natureza técnico-jurídica emergentes da apressada transposição da Directiva de 2015 pela referida Lei de 2017
b-» a circunstância de o preâmbulo da Directiva salvaguardar de modo expresso o segredo profissional, havendo que tomar esse referencial normativo como instrumento de interpretação do teor do da lei transpositora
c-» um passado de evidente não acatamento pela classe do que era já, desde 2008 lei expressa e vigente no domínio do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo
d-» a necessidade de salvaguardar a especificidade do modo de exercer advocacia em Portugal, nomeadamente a esmagadora preponderância da advocacia em prática individual ou em pequenas unidades de matriz não societária, sem capacidade financeira para efectuar um rápido ajustamento à nova cultura de compliance.
É este o contexto que ditou a previsão no Regulamento em causa de:
-» uma clara definição dos actos que não exigem o cumprimento dos deveres legalmente previstos em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, concretamente:
«a) Actos de consulta jurídica ou de emissão de pareceres
«b) Actos de patrocínio forense e de representação judiciária, independentemente da jurisdição onde se pratiquem ou devam ser praticados os atos processuais, incluindo em comissões ou tribunais arbitrais
«c) Informação obtida do cliente ou de terceiro visando a práticas dos atos referidos nas alíneas antecedentes, antes, durante ou após a intervenção em processo mediante representação judiciária ou patrocínio forense»
-» a previsão expressa de que o Bastonário, sujeito a deveres de confidencialidade, se responsabiliza pela concordância prática entre o dever de comunicação pelos advogados e o dever de segredo profissional, responsabilização essa que exonera os advogados que hajam efetuado a comunicação devida nos termos legais, não estando pois adstrito à pronta comunicação e sem filtragem que resultava da letra da lei antes de sobre ela ser efectuado o adequado e necessário processo interpretativo que ajustasse esse literalidade ao espírito da Directiva que ela transpunha.
Tal interpretação, afinal teleológica que não derrogatória, estribou-se no previsto nos considerandos (9) e (39) da Diretiva (UE) n.º 2015/849, onde consta:
«A consultoria jurídica deverá continuar a estar sujeita à obrigação de segredo profissional, salvo se o membro de profissão jurídica independente participar em atividades de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, se prestar consulta jurídica para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo ou se o membro de profissão jurídica independente estiver ciente de que o cliente solicita os seus serviços para esses efeitos»; «Em conformidade com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, um sistema de notificação em primeira instância a um organismo de autorregulação constitui uma salvaguarda importante de proteção dos direitos fundamentais no que diz respeito às obrigações de comunicação aplicáveis aos Advogados. Os Estados membros deverão providenciar os meios e a forma de garantir a proteção do segredo profissional, da confidencialidade e da privacidade».
Quem ler hoje o texto preambular do Regulamento não encontrará, pois acabou por ser suprimido, quando da sua submissão à Assembleia Geral que o aprovou, este inciso que era a pegada do processo interpretativo que reconduziu a Lei de 2017 ao espírito da Directiva de 2015, que aquela transpôs e sobre a qual o Regulamento foi delineado e, afinal, já a Directiva de 2005. Cito o excerto em causa:
«Comparado com o que poderia decorrer de uma interpretação que atendesse apenas ao teor literal da lei, o presente Regulamento significa avanço ao relevar, numa interpretação teleológica da mesma, o decorrente das Diretivas nas quais se funda em matéria de tutela de segredo profissional dos advogados»
É tempo de terminar.
De todo o exposto, creio ser perceptível estarmos a assistir a um cruzamento contraditório de situações:
a-» por um lado, a redução dos actos próprios de advogados, abrindo a porta à concorrência quanto a eles, por profissionais que não exercem advocacia, pelo que a razão da aplicação da legislação sobre branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo encontra neste alargamento subjectivo uma fonte acrescida de legitimação; não se trata já de proteger advogados e apenas advogados, mas sim enfrentar actos que podem, não necessariamente, ser actos de advogados
b-» por outro, uma desconsideração ostensiva da valia do segredo profissional no quadro da desconsideração dos segredos em geral
Naturalmente que, ante a lei em vigor em matéria de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, inúmeros problemas interpretativos se suscitam, não só quanto ao seu âmbito de extensão, como no que refere ao sentido de alguns dos seus preceitos. Suponho, porém, que pode ter sido mais útil ter feito este excurso integrado, convocando o tema, mas integrando-o no âmbito do que é hoje a matéria actual, a dos actos próprios de advogados, ou seja, o futuro da advocacia, tal como a temos conhecido.
Termino. Permitam que cite o que recentemente escrevi naquele meu espaço jurídico, que denominei como Patologia Social:
«Ante a deriva de desregulação capitalista da União Europeia, o futuro passará, estou disso consciente, pelo acantonamento da advocacia ao patrocínio forense, tudo o mais a ser colocado em leilão, adquirível por outras profissões: à lógica do mercado, ao triunfo da concorrência, soma-se a alegada tutela dos consumidores como argumento de vendas da solução e é isso que está na agenda pública.
«À sujeição política de Portugal aos ditames dessa União, soma-se o aliciante governamental ante os fundos financeiros com que a mesma nos acena e são a moeda de troca ante a qual se vende a nossa capacidade soberana de não aceitar, o que não augura liberdade de decidir, antes tráfico de interesses»
Sendo isto assim, o tema relevante é saber em que medida e porque forma, no ambiente actual de maioria absoluta, e tratando-se de matéria da exclusiva competência do Parlamento, será viável inverter a tendência que as leis desde 2008 assinalam e as recentes iniciativas legislativas prefiguram, já não digo quanto aos grandes temas estruturais, mas, ao menos, para aqueles tópicos em que ainda seja viável encontrar consenso a bem do perfil caracterizador da advocacia.