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A advocacia em causa

Não encontro forma de estar a favor do que se supõe ser aquilo que o Governo pretende ver legislado em matéria de alteração estatutária para a advocacia. Antes de mais, não encontro forma de estar a favor do método que o Governo está a seguir para legislar.

Trata-se de um assunto estrutural para o funcionamento da justiça em que se exigiriam alguns pressupostos.

O primeiro, o da abertura de uma linha de reflexão e diálogo com tempo suficiente para que se maturem as ideias que estão em causa e se possa oferecer uma alternativa. Isso não sucedeu e parece não vir a suceder. É um autoritarismo desnecessário, uma desconsideração evitável, uma absoluta falta de respeito pelo problema e pelos que ele afecta, os profissionais e os cidadãos.

O segundo, o da existência de um espírito construtivo e não a geração de um ambiente tensional e de confronto, como aquele a que se assiste, e veremos se com algum benefício para uma solução equilibrada.

O que fica claro é que o Governo quer legislar com a máxima urgência, em autismo e crispação . Trata-se de uma política que retoma a ideia do combate às corporações.

Do ponto de vista da Ordem dos Advogados, não encontro forma de compreender porque não houve a divulgação do que seja o ponto de situação relativamente ao que foi apresentado ao Governo, com quem parecia haver até agora uma linha de convívio que, pela fotogenia, parecia prometedor, o que teria sido relevante para um debate esclarecedor na última Assembleia Geral da Ordem.

Estamos, pois, ante um tema estruturante, a discutir suposições e processos de intenções. Segundo divulgação oficiosa, a Ministra da Justiça veio agora dizer que a Bastonária da Ordem dos Advogados não entendeu o teor da proposta governamental. É interessante, mas mais interessante seria termos ficado a saber quem é que não entendeu quem e, sobretudo, o que é que não se entendeu, pois estamos apenas na plateia a assistir a um espectáculo de sombras.

Enfim, não me revendo em muitas das medidas de protesto que foram aprovadas na última Assembleia Geral, não posso deixar em claro, que se trata de uma luta por uma causa de todos e oxalá se mantenha o máximo denominador comum entre a classe permitindo agregar o maior número.

Não me cabem actualmente responsabilidades na Ordem dos Advogados. Mas sei que é uma luta pelo futuro da advocacia, não necessariamente da advocacia como a conhecemos, pois há muito que não está bem, mas por uma advocacia modernizada, sim, mas seja digna de um Estado de Direito,  advocacia que, sendo profissão, defenda também a cidadania.

Ante a deriva de desregulação capitalista da União Europeia, o futuro passará, estou disso consciente, pelo acantonamento da advocacia ao patrocínio forense, tudo o mais a ser colocado em leilão, adquirível por outras profissões: à lógica do mercado, ao triunfo da concorrência, soma-se a alegada tutela dos consumidores como argumento de vendas da solução e é isso que está na agenda pública.

À sujeição política de Portugal aos ditames dessa União, soma-se o aliciante governamental ante os fundos financeiros com que a mesma nos acena e são a moeda de troca ante a qual se vende a nossa capacidade soberana de não aceitar, o que não augura liberdade de decidir, antes tráfico de interesses.

O propósito final de tudo isto é, não tenho dúvidas, uma reorganização do mercado. A advocacia como indústria produtora de horas facturáveis tem, neste cenário, a ambição da concentração monopolista, mas, em contraponto, a preocupação quanto à concorrência dos demais players – vai o termo – que passarão a actuar no mesmo sector do dito mercado.

Resta a questão: e os advogados que actuam em prática individual, em pequenas sociedades, em lógica de consórcio, que são a esmagadora maioria e são, afinal, aqueles que prestam apoio jurídico ao que é o país real, aquele país de cidadãos com recursos modestos, que será deles? E que será destes? E, face a isto tudo, o que será da Ordem, que até agora se afirmou como a Ordem de todos, sob a bandeira de ser a Ordem de uma profissão liberal, esta que há muito deixou de o ser para um número significativo de advogados?

Não está em causa, pois, apenas a advocacia em geral, e isso tornaria o problema já complexo, estão em causa, sim, vários tipos de advocacia e, no final da linha, a defesa dos cidadãos, pelo que resta saber de que lado está o Governo.

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Foto: L’avocat pathétique de Honoré Daumier

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