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Condenar por ouvir dizer

Progressivamente uma lógica autoritária vai-se impondo no processo penal, caucionada pelo Tribunal Constitucional que viabiliza, assim, o entendimento das instâncias. As garantias que eram tidas por valores constitucionais absolutos passam a meras eventualidades relativas.

No tempo em que foi delineado e aprovado o Código de Processo Penal de 1987 havia três regras que pareciam aquisições inderrogáveis: o direito ao silêncio do arguido como valor insofismável, a proibição do testemunho indirecto, basicamente o de ouvir dizer, a valia da prova indiciária terminar na fase de inquérito, ou da instrução – se a ela houvesse lugar – porquanto para efeitos de juízo penal condenatório a prova teria de obedecer a um outro critério de solidez, vencendo a dúvida razoável e não apenas a da mera suficiência de uma prognose. Tudo isso está hoje posto em causa e simultaneamente.

Leia-se, porque elucidativo, este sumário do Acórdão da Relação do Porto de 18 de Janeiro de 2023 [proferido no processo n.º 1197/07.4PBMTS.P1, relatora Liliana de Páris Dias, texto integral aqui]:

«I – A jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem considerando admissível, ficando sujeito a livre apreciação pelo tribunal, o depoimento que reproduz o que se ouviu dizer ao arguido, sendo certo que essa admissibilidade e livre valoração não está condicionada pela confirmação pelo próprio arguido em audiência do que uma testemunha a ele possa ter ouvido dizer.
«II – Embora tenda a considerar admissíveis os depoimentos indiretos quando a fonte do que o depoente ouviu dizer é o arguido, ainda que este se tenha recusado a depor ao abrigo do direito ao silêncio que lhe é atribuído, valorando-os nos termos do princípio da livre apreciação da prova, a jurisprudência ressalva a importância de a decisão dos factos provados não se basear apenas no conteúdo dos depoimentos indiretos, exigindo a existência e valoração de diferentes meios de prova que os corroborem.
«III – O Tribunal Constitucional concluiu, no acórdão n.º 440/99, que “o artigo 129º, nº 1 (conjugado com o artigo 128º, nº 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indiretos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. […] Por isso, não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal norma não é inconstitucional.”.
«IV – Encontra-se consolidado o entendimento de que para a prova dos factos em processo penal é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
«V – Acresce que a nossa lei adjetiva penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
«VI – Naturalmente, quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros, pois que a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais.
«VII – Assim sendo, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário, ou seja, além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.»

Nota-se, pela leitura, que o decidido ensaia algumas restrições e cautelas a um sistema que, no entanto, já dá como assente e consolidado.

É a condenação do arguido que, impossível ante o seu silêncio, é alcançada pelo que alguma testemunha disse que ele disse. É a condenação pelo ouvir dizer que a fonte da alegada informação não confirma.

Um novo mundo se desenha, o ocaso das liberdades, o aprisionamento das garantias. Bloco a bloco, com o anátema ao excesso de garantias a viabilizá-lo, um novo Direito praeter legem se desenha, como se legitimação fosse possível conferir-lhe, a ele rendidos.

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