Questão no início problemática, o de haver extensão às pessoas colectivas do conceito que parecia privativo dos seres humanos, a honra, em nome do qual se puniam a difamação [artigo 180º do Código Penal] e a injúria [artigo 181º do mesmo diploma].
Depois, ao ter passado a haver norma incriminatória específica, no caso o artigo 187º do Código Penal, o tema parecia resolvido em termos pragmáticos, pois a ofensa a tais entidades passou a ser punida.
Manteve-se, foi, a questão de saber se o que estaria em causa, no que a elas respeita, seria, a defesa da “honra”, como categoria jurídica própria, ou um outro conceito diferenciado, no caso – e para usar os termos do citado preceito legal – «a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos».
Citando-o:
«1 – Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.
«2 – É correspondentemente aplicável o disposto:
a) No artigo 183.º; e
b) Nos n.os 1 e 2 do artigo 186.º»
Lendo-o, nota-se bem a diferença com enunciado do artigo 180º, pelo qual se incrimina a difamação de pessoas singulares, o artigo 180º do mesmo diploma, segundo o qual o que ali se tutela é a «honra ou consideração», como se colhe pelo seu enunciado:
«1 – Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
«2 – A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
«3 – Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
«4 – A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.»
Quero com isto dizer que se os chamados “bens jurídicos” se achassem com o apoio às descrições normativas dos tipos legais incriminatórios, teríamos forçosamente de encontrar uma substancialmente diferença. Se o legislador fosse coerente e, na realidade, exprimisse o seu pensamento da melhor forma possível, não teria deixado como designação do Capítulo VI onde ambas as normas penais se encontram previstas como «Crimes contra a honra», já que o conceito está presente apenas na primeira na primeira – e também na que incrimina a injúria, o artigo 181º – e já não na segunda, nem naquela outra, prevista sob a mesma colocação sistemática que pune a ofensa à «memória» de pessoa falecida, no caso o artigo 185º.
Mas, como no que aos ditos “bens jurídicos”, se trata de construção, é hoje dado como assente que as pessoas colectivas também têm, honra. Basta, para isso, o construtivismo de reconfigurar o conceito de modo a abranger qualquer tipo de pessoas, os seres humanos e também os entes abstractos de natureza colectiva ou a isso equiparados. E digo “equiparados”, porque se não fosse essa ficção, a ofensa a uma sociedade unipessoal – que só é pessoa colectiva graças à imaginação criadora que dá extensão e contração ao mundo jurídico – ficaria sem sanção.
Vem isto a propósito, logo no primeiro dia do ano, em que regressei aqui, da leitura do Acórdão da Relação de Lisboa de 15.12.2022 [proferido no processo n.º 2063/18.3 T9ALM.L1-9, relatora Paula Penha, texto integral aqui].
Nesta parte, o aresto em causa faz-se eco do que é dado como assente, ante o modo de reconfigurar o conceito de honra ao sentenciar que:
«II- A honra das pessoas colectivas só pode ter uma dimensão objectiva/exterior/traduzida na ideia que os outros fazem dela, merecendo deles e sendo portadora de bom nome. Este bom nome tanto pode ser prestígio, credibilidade e confiança decorrentes das suas qualidades inerentes à actividade desenvolvida e/ou do comportamento dos seus membros ou órgãos, se mostre cumpridora, diligente séria, fidedigna e tenha notoriedade no domínio da respectiva actividade social e/ou obtenha respeito das suas congéneres e/ou da comunidade em que se insere e/ou tenha prestígio sócio-económico decorrente das suas qualidades e capacidades económico-financeiras».
Há, porém, nele entendimentos interessantes, como quando [e cito do sumário] consigna que:
«III – Ao crime de ofensa (à honra) de uma pessoa coletiva, é correspondentemente aplicável o disposto quanto o crime de difamação por meio de expressão quer verbal quer escrito ou por qualquer outro meio de expressão, previsto nos art.ºs 180º e 182º , por força da remissão expressa do nº 2, al. a) do art.º 187º para o art.º 183º que, expressa e precisamente, se reporta aos crimes previstos nos art.ºs 180º a 182º inclusive.
O legislador não fez menção expressa no art.º 187º, nº 2, para os art.ºs 180º, 181º e 182º pela, simples e óbvia, razão de que todos e cada um destes três artigos já constam dessa remissão/correspondente aplicação às pessoas coletivas, na medida em que o remetido art.º 183º se reporta, única e exclusivamente, aos crimes previstos nos art.ºs 180º, 181º e 182º. Sendo que este art.º 182º, conforme indica o seu título e o seu teor, contém uma norma de equiparação, ampliando as margens de punibilidade».
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A imagem é um painel em azulejo que se encontra na Gare Ferroviária de São Bento, no Porto. Representa Egas Moniz, de corda ao pescoço. A ser uma lenda é a de uma virtude