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A advocacia e a exaustão dos meios

Descontada a excessiva adjectivação, há um tema que poderia ter vindo a debate no âmbito da jurisdição criminal, mas acabou obnubilado ante o modo retórico como foi lançado na praça pública, coadjuvado com rudeza terminológica, que suponho desnecessária e acho contraproducente: os limites processuais à advocacia na defesa dos interesses que lhe são confiados.

A questão surge concretamente a três níveis do recurso advocatício (i) a meios processuais expressamente vedados (ii) a meios processuais não expressamente previstos (iii) a exaustão dos meios processuais legalmente previstos.

O segundo nível (ii) conhece ainda uma dupla particularização: (a) há meios processuais não expressamente previstos porque o modelo processual em causa não se pauta pelo princípio da legalidade das formas e dos actos de processo, como sucede, por exemplo, nos processos ditos de jurisdição voluntária, em que vigoram as regras da ductibilidade e da adaptabilidade do rito procedimental à finalidade visada pelo processo, o que inexiste de modo relativo no âmbito do processo penal (b) há meios processuais sem previsão expressa porque o legislador, tendo previsto o direito aos actos ou o dever de os praticar não previu o procedimento a dar-lhes tutela, mas as regras constitucionais ferem de inconstitucionalidade material essa omissão.

Aqui chegados parece razoável entendermo-nos quanto a grande parte da problemática, minimizando o controverso.

Que aos advogados é vedado advogarem contra lei expressa, resulta do seu próprio Estatuto  com a ressalva do legítimo e fundamentado entendimento jurídico que tenham quanto à inaplicabilidade ao caso do que esteja na lei como vedado ou também quanto à desconformidade constitucional de tal proibição, casos em que, justificando o porquê do acto, lhes é legítimo praticá-lo. Não há, pois, razão legítima para vedar à advocacia os actos que se integrem na categoria (ii-a) e (ii-b) e também os que recaiam na dupla excepção que acabo de enunciar.

Fica, pois, em aberto o tema da prática exasperante de todos os actos processuais advocatícios que se tenham por necessários.

E aqui a questão conhece dois ângulos diferenciados (i) o daqueles que entendem que isso atrasa, dilata, protela, entorpece [escolha cada um o termo mais adequado ao dicionário que tem por conforme à urbanidade] a tramitação do processo e (ii) o dos que entendem que é seu dever ir ao limite da última possibilidade de fazer examinar situações que têm por controversas ou de praticar actos probatórios que supõem necessários para se apurar a verdade ou se defender a causa que patrocinem.

A nível do sistema legal processual penal a passagem do Código de Processo Penal de 1929 [na versão resultante das múltiplas reformas que se somaram após a sua promulgação, nomeadamente as de 1945, 1972, 1977] para o de 1987 significou a supressão da redundância: onde outrora havia o inquérito preliminar a somar em alguns casos à instrução preparatória e a instrução contraditória como fase de possível de continuação da investigação criminal e a estruturação.

Para além disso o novo diploma ensaiou, ainda que de forma não totalmente conseguida, a estruturação e o desenho do faseamento processual segundo uma óptica de celeridade processual, como foi ditame da Lei de Autorização Legislativa de que emergiu este último Código.

Reformas posteriores têm vindo a cercear de modo substancial meios de acção processual para a defesa, nos vários momentos da tramitação. Assim, a irrecorribilidade de actos decisivos na fase de instrução, a limitação genérica do direito a recorrer, a excepcionalidade do efeito suspensivo dos recursos, o regime de subida diferida dos recursos interlocutórios, a exigência ultra formalista das conclusões da motivação de recurso, nomeadamente quando se impugna a matéria de facto e tanto mais.

Na mesma linha, foram gerados meios jurisdicionais de rejeição sumária em matéria de recursos, de quebra  possível do efeito suspensivo do recurso de constitucionalidade.

Num só aspecto em matéria de celeridade, a jurisprudência decidiu em sentido contrário ao espírito do Código: ao ter tornado meramente “ordenadores” os prazos de inquérito, viabilizando assim que esta fase processual tivesse como prazo limite de duração o da prescrição do procedimento criminal.

Quanto aos advogados existe, a nível regulamentar, o preceito do respectivo Código Deontológico [vê-lo aqui], cujo artigo 12º, subordinado à epígrafe “Colaboração na administração da justiça” determina:

«1. O advogado deve pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento das instituições.
«2. Constitui dever do advogado, no exercício da sua profissão, não advogar contra lei expressa, não usar de meios ou expedientes ilegais, nem promover diligências reconhecidamente dilatórias, inúteis ou prejudiciais para a correcta aplicação da lei ou a descoberta da verdade.»

Trata-se, aliás, de particularização do estatuído no artigo 90º, n.º 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados [consultá-lo aqui], segundo o qual constitui dever do advogado para com a comunidade:

«a) Não advogar contra o direito, não usar de meios ou expedientes ilegais, nem promover diligências reconhecidamente dilatórias, inúteis ou prejudiciais para a correta aplicação de lei ou a descoberta da verdade;»

Tudo visto, há um tema: como ordenar o processo penal para que os meios processuais se adequem às finalidades do processo.

Muitos são os ângulos de incidência da matéria. Ficam aqui três breves apontamentos.

Considerando na generalidade: estará o sistema legalmente equilibrado em matéria de meios processuais os vários sujeitos processuais ou há apenas desequilíbrio na prática, sendo válidos e suficientes as previsões que estão em lei?

Ponderando a perspectiva dos advogados: justifica-se sem balizas o esgotamento advocatício dos meios de actuação processual? Importa clarificar de forma geral e abstracta – densificar como ora soe dizer-se – o conceito de «diligências reconhecidamente dilatórias, inúteis ou prejudiciais para a correcta aplicação da lei ou a descoberta da verdade»? E a quem reconhecer competência para proceder essa avaliação e deter meios para a enfrentar, prevenindo-lhe os efeitos, para além da responsabilização disciplinar que possa daí decorrer?

E no outro ângulo, o da acusação pública: justifica-se a natureza tendencialmente indefinida dos prazos de averiguação criminal, nomeadamente havendo arguidos constituídos? Há razão para a formação de megaprocessos geradores de previsível dilação temporal e justiça de classe porque com defesa de livre escolha só consentida aos poucos que tenham meios de fortuna para a custearem? E a quem conferir competência para fazer face a esta possibilidade, evitando a lesão que naturalmente isso causa, logo aos privados a isso sujeitos e até à procedência eficaz da acção penal?

Um debate com este perfil, sem rancores nem epítetos deprimentes é, creio, necessário.

Tive o privilégio de assistir ao nascimento do Código de Processo Penal de 1987, ao ter integrado a comissão que redigiu o seu projecto; tenho tido a oportunidade de assistir ao modo como, o legislador por um lado, e a jurisprudência por outro, o têm tornado numa outra realidade, bem diversa do que se tinha previsto, nem sempre com razão, quantas vezes com soluções injustas.

Eterno soldado raso na advocacia, perpétuo estudante do Direito que vejo aplicado, juntando o que vejo no foro a quanto leio na teoria, acho que é tempo de se ensaiar uma revisão do sistema processual penal: não como as casuísticas, asistémicas reformas que têm sido feitas, juntando amiúde confusão à incerteza, mas uma revisão estrutural orientada por uma linha coerente de pensamento, sem revanchismo, sem lógica de avantajamento no poder processual, sem cerceamento daquele mínimo garantístico.

Agora no ambiente miserável actual em que, não havendo sequer papel nos tribunais, em que o sistema de gravação audio é do mais primitivo que existe, em que a tecnologia das videoconferências se torna grostesca ante qualquer meio banal ao alcance de qualquer telemóvel, se discute o futuro da inteligência artificial, em que a técnica de autuação dos processos segue ainda um modelo arcaico de redundância e desalinho, não haverá seguramente procedimentos que sobrevivam à falta de meios.

A guerrilha verbal não ajuda. E nada resultará no processo criminal, em termos de equilíbrio entre a eficácia e justiça, se não for entendido por quantos têm responsabilidades no sistema, este princípio básico de moralidade processual: “não trates os outros como não gostarias tu de ser tratado”. É um primeiro passo para uma grande viagem.

Fosse esta máxima seguida, quantos, a suporem na própria pele, o que acham adequado aplicar aos outros, talvez fizessem um acto de contrição, antecâmara do arrependimento e de contributo para uma vida nova.

 

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