Morreu Adriano Moreira no ano em que perfez cem anos de uma vida tão intensamente vivida.
A sua faceta como estadista, dirigente político e pensador dos temas da vida pública, incluindo a internacional, fez esquecer a muitos a sua vertente como jurista interessado nos temas criminais e a sua intervenção como advogado.
A primeira surgiu logo quando do primeiro emprego. Filho de um modesto agente de polícia, foi igualmente banal a colocação que encontrou à saída da Faculdade, em 1944, como funcionário do Arquivo Geral do Registo Criminal e Policial.
Três anos depois, o seu valor como jurista abrir-lhe-ia as portas do departamento jurídico da sucursal portuguesa de uma empresa norte-americana, onde se manteria até 1975, cargo que acumulou a partir de 1946 com o estágio para a advocacia, sob o patrocínio de Teófilo Carvalho dos Santos, advogado em Alenquer, um activista da oposição ao regime do Estado Novo e seria nessas águas que se daria a sua formação política.
O empenho nas matérias criminais haveriam de custar-lhe um grave revés quando, em 1947, subscreveu uma denúncia criminal contra o então Ministro da Guerra imputando-lhe responsabilidades na morte, em condições de cativeiro, do General Marques Godinho.
Em retaliação seria detido no Aljube, onde estava também encarcerado Mário Soares, tendo sido presa também, pelos mesmos factos, a viúva do General.
O processo acabaria por ser arquivado e Salazar viria a nomeá-lo como Subsecretário de Estado da Administração Ultramarina em 1959 e anos depois como Ministro do Ultramar. A sua obra também aí de pautou pela profunda alteração legislativa da orgânica e dos estatutos jurídicos vigentes nesses territórios.
Dele se dirá como de tantos, advogado uma vez, advogado sempre. Guardou a toga que, viria a revelar, fez entrega a uma das suas filhas, acto simbólico de digna linhagem na profissão.
Fui esta manhã ao escritório em busca de um livro jurídico seu que sabia ter comprado, dava eu os primeiros passos no estágio.
Publicado em 1960, é uma compilação de estudos sobre temas de natureza jurídico-criminal, desde logo aqueles que havia sofrido na pele, sobre “O regime jurídico das detenções” [publicado em 1947], «sobre o habeas corpus» [incialmente editado em 1945], um outro intitulado “A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre habeas corpus” [também saído em artigo de revista em 1947].
Mas não é só este o conteúdo da colectânea. Indo às suas origens profissionais, o livro finda com um estudo relativo ao problema da identificação. Evidenciando agudeza de espírito e antecipação sobre o que viria ser um tema de futuro, ao revelar o seu pensamento relativamente aos “Aspectos da tutela penal da economia”.
Pelo meio ficam ensaios relativos ao “Critério das medidas de segurança”, ao “Conceito e valor da reincidência” e ainda quanto à estrutura dos crimes ditos habituais e a interrelação dos crimes políticos e habitualidade.
O estudo sobre o habeas corpus é notável.
O tema parecerá situado no tempo, porquanto se relaciona com o âmbito de aplicação do instituto em causa, introduzido em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 35043, de 20 de Outubro de 1945, aos detidos sujeitos ao foro militar, caso do General Godinho.
Há nele um passo digno de registo, aquele em que Adriano Moreira comenta o preceito legal então vigente, o qual mandava punir o advogado que recorresse à dita providência nos termos que a seguir se transcrevem:
Escreve então Adriano Moreira a propósito desta repressiva medida, estas vibrantes palavras:
«Que a punição da falta profissional grave e da desonestidade pudesse, como já foi dito, afastar os advogados do patrocínio do habeas corpus, viria demonstrar que a advocacia estava tão longe do tempo em que Berryer levava ao tribunal a verdade e a sua cabeça, para que ele dispusesse de uma depois de ter ouvido a outra, que não passaria já de uma sombra da sua própria sombra, sem nenhuma espécie de função social».
Faz falta lê-lo hoje também nesta vertente apaixonada pela Justiça Criminal.
O Direito não é uma abstração, sim a luta pelo Direito.
Folheando o livro, neste Domingo de chuva, vejo perpassar por ele precisamente esse combate em prol da Justiça. Feito com coragem, mas com espírito construtivo. À data em que o livro foi editado Adriano Moreira desempenhava funções governativas no regime político que nos governou até 1974. Não se coibiu, porém de o trazer a público.
Com o 25 de Abril, seria saneado do Instituto onde leccionava, demitido pela empresa onde exercia funções jurídicas, sujeito à ignomínia de um mandado de detenção. Procuraria asilo no Brasil. Regressaria a Portugal três anos depois.
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