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Acreditar em dias melhores

Confesso, e digo-o com amável ironia, que a primeira sensação que tive ao folhear o livro e ao deter-me no índice, foi o que lhe faltaria um último capítulo, o dedicado às partes civis enquanto sujeitos processuais penais, por não estar nele autonomizada essa categoria.

Depois, num exercício mental especulativo, que tinha lógica aparente, perguntei-me se, em resultado da privatização que foi introduzida com o Código de Processo Penal de 1987 quanto à categoria dos lesados – cujo ressarcimento patrimonial passou a depender de pedido específico, numa lógica de princípio dispositivo,  suprimida a oficiosidade reparatória, – caminho esse só rectificado mais tarde – teria havido um pensamento teórico pelo qual os ditos sujeitos tivessem sido arredados definitivamente do elenco dos sujeitos processuais criminais.

Pelos vistos não foi assim, pois encontram acolhimento no capítulo onde se trata dos assistentes, essa categoria conceitual que é muito típica do nosso Direito. Sobrevivem, pois.

Voltando à obra, ela é, de facto, como o subtítulo o enuncia, circunscrita aos sujeitos do processo e não há, pois paralelo, no que à sua extensão respeita, com o livro Direito Processual Penal-I, publicado pelo primeiro autor, em Fevereiro de 1974, porquanto não se abordam aqui os princípios gerais do processo penal, nem os capítulos respeitante ao Direito respectivo, naquilo em que são dele elementos integrantes a interpretação, a integração e a aplicação temporal e espacial do mesmo.

Mas, sendo aquele outro livro anterior ao Código de 1987 de há muito que se esperava uma obra que trouxesse actualização ao pensamento de Figueiredo Dias, presidente que foi da Comissão que levou a cabo a elaboração do mesmo e a quem a modernização do sistema tanto deve. E, em colaboração com Nuno Brandão é o que este livro se propõe, num estilo em que a natureza didática marca o tom da escrita.

Ter o estudo incidido sobre os sujeitos do processo criminal torna-o imediatamente actual, o que digo por uma razão minha: se há algo que explique a natureza permanentemente tensional dos temas do processo penal, são os que se traduzem na vertente das relações de poder entre os seus intervenientes. Eis o que tentarei nele achar, imensa a curiosidade, prescrutando como nele se ponderam os problemas daí derivados.

É assim no que se refere à interrelação do juiz de instrução com o Ministério Público, do Ministério Público com o juiz de julgamento. Múltiplos exemplos o evidenciam e irei ler a obra perspectivado no que sobre eles ali se contém.

Sistematizando alguns, não porque faltem outros tão ou mais exuberantes, referirei:

-» a natureza intrinsecamente jurisdicional do tema inerente às invalidades processuais, e nomeadamente as nulidades, e a concomitante judicialização necessária do seu conhecimento ou, a alternativa que tem vindo a ganhar espaço, a da permissividade ao Ministério para, praticada a invalidade, conhecê-la e, a recusá-la, ter a vantagem de não haver disso recurso

-» a susceptibilidade de se afastar a colegialidade para o julgamento de crimes, com imposição da singularidade do mesmo, isso por acto do Ministério Público, poder ante o qual, quer o colectivo cuja intervenção é subtraída, quer o juiz singular, cuja competência é imposta, não têm meios para obstar à sua concretização, tendo de se sujeitar a essa conformação do objecto processual e concomitante selecção do tribunal por parte do acusador

-» a gratificação da decisão instrutória complacente face à acusação pública com o benefício da irrecorribilidade da mesma

-» a inexistência de tutela judicial para a garantia do prazo razoável do inquérito, mesmo quando a  duração deste atinge uma duração imoderada.

Não só aqui  se encontram os nós problemáticos do sistema, no que se refere à distribuição de pesos e medidas entre os sujeitos do processo criminal.

No que ao arguido respeita, tudo se tornou mais gritante, sendo que os hoje mais audíveis são os que clamam pela compressão ainda maior do seu estatuto de defesa.

Assim, e também para antecipar os olhos com que lerei esta obra prometedora, e em lógica estritamente ilustrativa menciono:

-» a desproporção dos prazos para os actos cruciais de defesa – requerimento de abertura de instrução e/ou contestação – ante a dimensão mastodôntica de alguns inquéritos e os anos acumulados de que o investigador beneficiou para a sua efectivação

-» as circunstâncias ainda hoje penosas em que se tem de materializar o acesso aos autos, mesmo quando digitalizados

-» a compressão da possibilidade de defesa pelas medidas de garantia patrimonial que privam o arguido de meios para assegurar uma defesa profissional remunerada que o socorra, tratando-se, sobretudo, de processos complexos, de longa duração, a exigirem presença e conhecimento

-» a justiça de classe que tais megaprocessos geram por impossibilidade de o cidadão médio custear uma defesa de sua livre escolha que garanta uma assistência efectiva e permanente aos actos processuais de longa duração, frequentemente durante meses

-» a eternização da subsistência do estatuto de arguido, com a carga estigmatizante a isso inerente ou a prorrogação do tempo de audição do mesmo, constituído mas sem declarações subsequentes

-» a estigmatização social prévia à submissão a juízo alcançada pela sistematicamente impune violação do segredo de justiça, gerando uma presunção sociológica de culpa, apta a gerar clamor público, amiúde  induzindo medidas coactivas nisso fundamentadas.

Além disso, os defensores. Para além do que neles se projecta por via do que sucede aos arguidos, há, depois, o que releva da cultura que se dissemina quanto ao  modo que entendem ser o de actuar e ao modo como isso é entendido e avaliado, por todos os demais, frequentemente sem apreço mútuo: sentimentos de agastamento e rancor envenenam o ambiente e pessoalizam os problemas. Sobre isso não há lei que determine a solução, talvez uma outra atitude que abra a porta ao equilíbrio.

Já quanto ao assistente, o tema é do decorrente do sistema da legitimação de qualquer pessoa sem ligação ao conceito de ofendido, no fundo o modelo dito de “acção penal popular”, no que abre via à entrada no processo penal de espontâneos e, claro, jornalistas, que assim têm acesso em tempo real ao teor dos autos, fonte directa do que traduzem na comunicação social. Isto quando, quanto aos ofendidos, frequentemente, não gozam sequer de diálogo compreensivo com o Ministério Público, de quem são legalmente coadjutores.

Ainda quanto aos assistentes, em caso de arquivamento, recai sobre eles o ónus de não terem em seu benefício uma instrução que seja uma fase de investigação do não investigado no inquérito, pois têm de redigir, como requerimento daquela fase judicial instrutória o sucedâneo lógico de uma acusação, responsabilizando-se ao terem de imputar crimes a terceiros concretamente individualizados, sem o apoio de prova indiciária suficiente, pois a averiguação do Ministério Público não a trouxe – e por isso arquivou o processo – e a instrução, em regra, não a trará, vista a sua natureza, ou a interpretação que começa a grassar quanto a isso.

Enfim, os lesados, comprometem-se com um pedido cível de indemnização, cuja causa de pedir está estribada na acusação pública e, podendo esta ser alterada pela pronúncia, não têm o benefício de um articulado suplementar que lhes possibilite reconfigurar o objecto do seu pedido. Além de que, não cumulando esse estatuto com o de assistente, os meios de acção processual ressentem-se pela sua significativa diminuição.

Já os demandantes civis, a querem fazer valer na acção civil aderente ao procedimento criminal pretensões que não tenham cunho estritamente ressarcitório, ficam disso privados, pois o sistema não o possibilita: ao limite, a nulidade ou anulabilidade do negócio lesivo, porque criminoso, terá de ser alcançado por sentença declarativa em separado no processo civil.

E tanto mais haveria a dizer sobre cada um destes sujeitos do processo. Fica aqui apenas um apontamento.

Ler com expectativa é ler com gosto. Sobretudo quanto se procura consolo para as angústias, ou, com esperança, um meio de acreditar em dias melhores. Assim lerei.

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