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Juízes e corrupção: um tema capcioso

O jornal “Público” leva a título de uma notícia [ver aqui], divulgada na sua edição do dia 15 e com chamada à primeira página: «Um quarto dos juízes acredita que há corrupção na justiça mesmo que seja “muito raramente”».

Depois, no texto, lê-se que afinal não é um quarto de todos os juízes, sim um quarto dos 494 entrevistados num inquérito. Ora o título é grave porque induz em erro. O Provedor do jornal, José Manuel Barata-Feyo ainda recentemente deu conta das queixas dos leitores quanto aos títulos do periódico e teve de reconhecer haver razão em algumas delas.

Segundo dados oficiais, em 2021 havia 1.735 juízes nos tribunais de primeira instância e superiores. Ora 1/4 de 494 dá 123, 50. Ou seja menos de 124 juízes em 1.735 é que têm a opinião que vem citada, quando 1/4 do total de juízes implicaria ser uma opinião partilhada por 433. E já veremos que opinião é.

Que fique claro, porém, que o problema não é ser maior ou menor o número de juízes que acham que há corrupção entre os seus pares. Nisso, 123 ou 433, é uma questão meramente quantitativa. Grave é ser o panorama actual tal que dá para haver quem creia que vive num mundo com colegas assim. Só que o problema é este e um outro.

O inquérito está aqui, publicado no site do próprio Conselho Superior da Magistratura.

Vendo-o, importa notar, em primeiro lugar, que o mesmo não vem acompanhado de ficha técnica, da qual deverá constar o teor especificado da amostra, o critério de selecção da mesma e a margem de erro, como decorre da Lei n.º 10/2000, de 21 de Junho [ver aqui].

Depois disso, há que atentar na frase para a qual era pedida uma resposta na base do “acredito que”:

«Acredito que, no meu país, durante os últimos três anos, juízes aceitaram, a título individual, subornos (recebendo dinheiro) ou envolveram­-se noutras formas de corrupção (aceitando ofertas não monetárias ou favores) como um incentivo para decidir processo(s) de uma maneira específica.»

Veja-se que se fala nos últimos «três anos» e em «juízes». Para se responder com verdade basta (i) ter-se uma “crença”, ainda que não baseada em factos: é esse o sentido de acreditar (ii) haver mais do que um juiz a integrar aquela situação corruptiva em que se acredita.

É legítimo extrair daqui uma ilação que permita afirmar algo que tenha um mínimo de rigor, estando a falar numa crença sobre uma realidade indeterminada? É que basta que 134 juízes estejam convictos de que pelo menos 2 colegas seus são corruptos, já a resposta ao inquérito se torna verdadeira. E está a criado o opróbio que pode recair sobre toda a classe.

Dir-se-á que é assim por se tratar de um inquérito a uma percepção. Ora, está aí outro ponto. A saber-se que que há juízes sentenciados por actos de corrupção, todos partilharemos dessa percepção que o inquérito quis recolher. Mas nisso, sem distinguir, vale o mesmo em relação a todos os agentes de justiça, pois nenhuma classe está isenta de ter tido nas suas fileiras membros prevaricadores condenados por sentença transitada e membros da classe a acreditar que há colegas nessa situação.

Ora tudo isto é radicalmente diferente de dizer-se que um quarto dos juízes [todos] acredita que haja corrupção na justiça [toda], mesmo que «seja muito raramente» e está aí o problema no que ao jornal respeita.

Escrevo isto não por causa do jornal [faço questão de neste espaço me abster a esse propósito], sim por assistir ao efeito que o artigo está a ter e a polémica que está a gerar, não relevando a indeterminação do inquérito, a natureza indutora da sua pergunta e o abusivo título com que o mesmo foi divulgado.

Ou estar-se-á a querer gerar, com a notícia e a polémica, a ideia de que há uma endémica, mas impune, corrupção na judicatura, e nisso acreditam 123 juízes? É que a ser assim, está na hora do “varejo” e, já agora, que inquéritos destes se generalizem às demais profissões jurídicas para vermos quem pensa o quê de quem. Suponho que não é isso que, reflectindo, se pense e, menos ainda, se queira.

Quererei dizer mais? Não. Apenas que me teria recusado a responder a um inquérito assim.

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