Não é tudo quanto disse, mas fica um apontamento estruturado do que penso e do que disse no debate sobre as associações públicas profissionais, promovido pelo Conselho Regional de Lisboa e em que participaram, para além do seu Presidente, João Massano, três deputadas respectivamente do PS, partido autor do projecto de lei que foi aprovado na generalidade e baixou à respectiva Comissão, do PSD e do PCP, respectivamente Joana Sá Pereira (PS), Emília Cerqueira (PSD) e Alma Rivera (PCP). O colega André Matias de Almeida não esteve presente por razão justificada. Ricardo Santos Ferreira, subdirector do Jornal Económico moderou. O vídeo pode ser acedido aqui.
Já tinha chamado à atenção neste espaço [ver aqui] para o tema quando a discussão do mesmo foi agendada na Assembleia da República.
Assim, fiz notar nesse encontro:
-» parecer-me insólito que um tema como este. que tem a ver com uma questão estrutural para a Justiça e integra uma matéria de ordem pública, surja pela iniciativa de um partido e não sob a forma de uma proposta de lei do Ministério da Justiça, como se o Governo tivesse algo a recear quanto ao tema, tornando o partido que o viabiliza o comanditário da iniciativa
-» tornar-se lógico que essa partidarização na origem facilitou o argumento dos que acham – e é isso o que acha a Ordem dos Advogados – que estamos ante um ataque político à advocacia
-» e não se diga, como foi suscitado no debate que tal é uma decorrência natural de se tratar de matéria que integra a a área de competência reservada da Assembleia da República, porquanto há inúmeras matérias com tal perfil em que o processo legislativo é iniciado pelo Governo, como é, aliás, normal que suceda
-» não aceitar que, no que à advocacia respeita, este projecto, através da redução do tempo de estágio e outras medidas convergentes, vise garantir o acesso ao mercado de trabalho por parte dos jovens licenciados, pois o que infelizmente caracteriza esse mercado é o amplo desemprego, uma massa significativa de advogados, jovens e não só, sem ocupação, tantos a subsistirem por via das oficiosas e, assim, o acréscimo do número de advogados, pelo aligeiramento das condições do acesso, só irá piorar a situação
-» ter opinião firme de que a redução do tempo de estágio, somado ao encurtamento da licenciatura decorrente do regime de Bolonha, vai fomentar a impreparação jurídica dos que chegarem à profissão jurídica, sendo o Direito cada vez mais complexo e a exigir, por isso, uma formação cada vez mais intensa e por isso alongada temporalmente e não o modelo que a iniciativa legislativa supõe
-» compreender que, em tese, não deve o estágio para a advocacia duplicar o currículo universitário, replicando o que já foi ensinado nas faculdades de Direito, assim elas forneçam – e tantas vezes não fornecem – conhecimento suficiente em áreas jurídicas essenciais para o exercício da profissão, o que tem de ser a Ordem dos Advogados a colmatar essa insuficiência de base, amiúde decorrente de um ensino de qualidade mas estruturado em parâmetros meramente teóricos
-» compreender que a desproporção dos custos da formação e o rigor na avaliação dos estágios não podem ser instrumentos de selecção natural dos menos afluentes e de controlo do números dos que pretendem aceder à profissão, havendo, porém, que evitar que seja a lógica da oferta e da procura a gerar essa selecção dos mais aptos, pois isso sucederá à custa de um exacerbar da lógica concorrencial com risco para os padrões éticos da profissão
-» ter percebido que o que, em termos de acesso ao mercado de trabalho, o que subjaz à iniciativa é, sim, a viabilização da prestação de serviços jurídicos por parte de entidades outras, através de uma lógica que irá banir o princípio dos “actos próprios de advogado”, pelo que o caracterizará no futuro os escritórios de advocacia em sentido próprio será aquilo que neles subsistir de serviços de contencioso, isso vista a regra do patrocínio judiciário obrigatório
-» supor que a indústria da advocacia, naquilo em que transforma a profissão numa produtora de horas facturáveis através da prestação de serviços jurídicos em lógica empresarial, exige medidas adequadas nomeadamente as de protecção dos advogados que nelas exerçam a sua profissão, para que não ocorra uma filosofia de mero assalariamento a juntar-se à de empregados por conta de outrem, mesmo que sob a aparência, em alguns casos, do estatuto de associado
-» aceitar que a complexidade dos temas legais que hoje caracterizam o universo jurídico, incluindo o forense, tornam lógica a multidisciplinariedade como método de actuação profissional, através do concurso coordenado de vários saberes que não apenas o jurídico
-» ante isso, as sociedades multidisciplinares surgem como formas organizativas razoáveis, assim se encontre uma plataforma de concordância práticas entre os requisitos deontológicos das várias profissões que nelas se concertem, nomeadamente no domínio dos impedimentos, do segredo profissional, dos conflitos de interesses e, afinal, de todos os parâmetros éticos que balizem a respectiva actuação
-» entender que tal não colide necessariamente com a subsistência da advocacia em prática isolada ou em exercício através de pequenas unidades organizativas – vulgo boutiques – supondo eu que a lógica dos “consórcios” – possivelmente a carecer de regulamentação mas que não me parece vedada por lei – poderá ser a forma de organização adequada a enfrentar situações profissionais – nomeadamente ante os megaprocessos – que exijam a intervenção concertada de mais do que um advogado em termos de satisfazer as exigências de uma agenda intensa e da excepcional complexidade dos temas em debate
-» duvidar que o modelo de intromissão na autoregulação disciplinar, que se apresenta como a filosofia de base da projectada lei possa ser tolerável, sobretudo no que subjaz à entronização de um órgão de supervisão, mas também no que se refere à presença de elementos exteriores à profissão naquele órgão e também nos seus órgãos disciplinares.
Ficou patente durante o debate de que, encontrando-se em sede de comissão parlamentar especializada, haveria disponibilidade para acolher os contributos necessários para melhorar a iniciativa legislativa, o que é de saudar, assim seja tal promessa concretizada em termos de uma audição efectiva e mobilizadora.
Surgiu durante o debate a ideia de que o diploma que foi aprovado na generalidade consiste numa mera lei quadro e surgirá oportunamente uma regulação específica para a Ordem dos Advogados, onde as especificidades da advocacia serão relevadas; a ser assim, a discussão está diferida, mas os temas terão de ser equacionados com realismo e não por mera transposição de directivas europeias que não se adaptem à realidade advocatícia nacional.