Ao ler esta tese de mestrado de Francisco Machado Simões sobre a sucessividade como figura diferenciada da continuação no domínio contraordenacional ressurgiu-me a questão, que tem sido, aliás, recorrente no meu espírito: tratando-se no que a esta figura respeita de uma categoria de forma de comissão do ilícito não privativa do mercado de valores mobiliários, ao ter tido a mesma oportunidade de ser consagrada quanto a tal sector da vida financeira – pela introdução no Código de Valores Mobiliários de um artigo 402º-A – porque não se encontraria melhor local sistemático para a tornar lei geral que no âmbito de uma lei quadro que, a ser legislada, desse balizas legais genéricas ao ilícito de mera ordenação social, nomeadamente para aqueles casos em que se verificam infracções em massa?
Sei que há quem discorde quanto à necessidade ou vantagem de uma tal legislação ordenadora de cunho geral. Não me convencem os argumentos, pois cada vezes mais me pesam as disfunções normativas emergentes de um sistema legislativo baseado em remissões incertas e em previsões diversas sem razão material de distinção.
E mais sensível se me torna o problema quando leio, como uma das conclusões deste trabalho universitário que «a confluência material dos três ramos do Direito Financeiro – Direito dos Valores Mobiliários, Direito Bancário e Direito dos Seguros – torna arbitrária, e portanto, desigual a aplicação da infracção sucessiva apenas às contraordenações previstas no CVM e no Regime Jurídico da Supervisão e Auditoria» [conclusão 23ª, página 158, diga-se que embora a este segundo ordenamento jurídico (vê-lo aqui) o autor não desenvolva a alusão].
É esta a redacção do referido artigo 402º-A do CVM [epigrafado, em estilo descritivo, como factos sucessivos ou simultâneos e unidade de infracção]:
«1 – A realização repetida, por ação ou omissão, do mesmo tipo contraordenacional, executada de modo homogéneo ou essencialmente idêntico e no âmbito de um contexto de continuidade temporal e circunstancialismo idêntico, constitui uma só contraordenação, a que se aplica a sanção abstrata mais grave.
«2 – No caso referido no número anterior, a pluralidade de condutas e as suas consequências são tidas em conta na determinação concreta da sanção.»
Se bem que o site da PGDL [tendencialmente fiel quanto à menção às versões temporalmente sucessivas da lei que ali compila] o não assinale quanto a este preceito [ver aqui] tratou-se de um aditamento introduzido no Código pela Lei n.º 28/2017, de 30 de Maio, a qual «transpõe a Diretiva 2014/57/UE, do Parlamento e do Conselho, de 16 de abril de 2014, a Diretiva de Execução (UE) 2015/2392, da Comissão, de 17 de dezembro de 2015, e parcialmente a Diretiva 2013/50/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, e adapta o direito português ao Regulamento (UE) n.º 596/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014».
Trata-se de uma construção surgida no âmbito do Direito alemão [pátria de origem, aliás, do sistema contraordenacional, ali a OWiG (ver aqui) em Portugal o RGCO (ver aqui)], mas que na Alemanha não encontrou a referida consagração legislativa, sendo ainda «uma figura da praxis».
No seu estudo Francisco Machado Simões assinala, com clareza, a diferenciação entre a infracção sucessiva e a continuada, acentuando o carácter objectivo daquela e sistematizando em quatro requisitos as suas características individualizadoras: (i) realização repetida (ii) identidade típica das realizações (iii) homogeneidade executiva (iv) continuidade contextual.
Ante a formulação legal, nota-se uma sobreposição parcial relativamente à figura da continuação – a qual, mau grado as normas remissivas da legislação contraordenacional para a lei penal que a prevê, é figura que há quem, em posição minoritária e contra a jurisprudência confluente, duvide tenha aplicabilidade àquele tipo de ilícito não penal.
Veja-se o desenho da figura da continuação tal como está delineado no artigo 30º, n.º 2 do Código Penal:
«Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.»
Como o faz notar o autor, a a diferença específica entre a sucessividade e a continuação surge pela inexistência naquela dos pressupostos de cariz subjectivo e também ante os efeitos diferenciados a nível processual. Mas não se fica por aqui a análise, pois espraia-se pela configuração da infracção sucessiva no contexto de figuras vizinhas como a infracção permanente, a habitual e o ilícito de trato sucessivo e do mesmo modo a configura no quadro do concurso de ilícitos e de normas.
Obra breve, clara na sua narrativa e como tal directamente útil – o que se está a tornar, felizmente, usual, a benefício do interesse jurídico-prático da reflexão académica – este ensaio aborda complementarmente outros temas que a matéria supõe e assim, nomeadamente:
-» a natureza precedente do tema do concurso aparente de normas face ao tópico da infracção sucessiva
-» a relação de especialidade entre o concurso efectivo de contraordenações e a infracção sucessiva, vista a natureza específica do regime de punição desta
-» o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional
-» a possibilidade de analogia in bonam partem, não apenas do regime sancionatório da infracção sucessiva coo dos «efeitos de decisão definitiva e de caso julgado inerentes ao mesmo»
Tema que fica em aberto é afinal o critério de punição da sucessividade.
Percebe-se que «a infracção sucessiva tem como fundamento o menor desvalor da ação associado à repetição de atos típicos (infrações em massa), o que torna a aplicação do regime punitivo do cúmulo mitigado, inerente ao concurso efetivo, potencialmente desproporcional, justificando desta forma, a punição através do princípio da exasperação», funcionando esta de modo a adequar a coima em função de estar perante uma «forma especial e privilegiada de execução do facto plúrimo».
O que não se alcança é o modo de efectivar a punição fazendo-o com segurança, sem discricionariedade e com respeito pela igualdade ante situações idênticas, impressionando a vacuidade do referido n.º 2 do artigo 402º-A quando estatui apenas que « a pluralidade de condutas e as suas consequências são tidas em conta na determinação concreta da sanção», o que não é suporte mínimo suficiente para orientar quem tiver de aplicar a lei, nem conforto para quem tiver de a sofrer.
É que, como nota o autor da tese que temos vindo a sumariar, trata-se de ter em conta essa pluralidade de condutas e o concomitante desvalor do resultado global «como agravantes» sobre uma unidade ficcionada.
Logo um exemplo de incerteza o estar em dúvida como computar o benefício económico relevante para efeito de estatuir a coima concreta [como o supõe o artigo 18º, n.º 2 do RGCO, o artigo 22º, b) do RGCOE, o artigo 211º-A do RGICSF e no caso o artigo 388º, n.º 2, alínea a) do CMV]. O autor conclui [página 122] pela valoração de todo o benefício. Mas dúvida maior emerge de o próprio reconhecer que um dos tópicos determinantes do tema é precisamente a proporcionalidade da sanção e aqui, o histórico comparativo da dosimetria das contraordenações, ainda que não sucessivas, não é molde a gerar confiança na previsão do que daí resulte.