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Alteração substancial e relação concursal

Eis, numa narrativa sintética e compreensível, diria pedagógica, o tema incidental da  alteração substancial de factos em processo penal, tal como exposto no acórdão da Relação de Lisboa de 7 de Junho de 2022 [tirado no processo n.º 124/14.7YELSB-A.L1-5, relator Fernando Ventura, sumário elaborado pelo relator, texto integral aqui]:

«1. Nos termos da disciplina normativa contida nos artigos 358.º e 359.º do CPP, a alteração substancial dos factos em audiência constitui incidente da fase de julgamento, que se desdobra operativamente em vários momentos e diversos atos judiciais.
«2. O primeiro momento é constituído pela verificação pelo tribunal que a prova produzida em audiência levou a que se averiguasse indiciariamente de factos com relevo para a decisão da causa, os quais comportam uma alteração do facto histórico-social objeto da perseguição jurídico-penal, tal como conformado pelo ato processual definidor do objeto do processo (acusação ou pronúncia). Deve o tribunal verificar igualmente se os novos factos indiciados preenchem o conceito estatuído na alínea f) do artigo 1.º do CPP, ou seja, se são subsumíveis a crime (materialmente) diverso do imputados na acusação/pronúncia ou comportam a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
«3. Atingida convicção indiciária positiva pelo julgador sobre essas duas vertentes, e não se tratando de alteração derivada de factos alegados pela defesa, o modo de atuação subsequente decorre do comando inscrito na parte final do n.º 1 do artigo 358.º, em conjugação com o n.º 4 do artigo seguinte: o tribunal comunica a alteração aos sujeitos processuais e inquire-os sobre se estão de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, concedendo-lhes, se o requererem, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.
«4. Uma vez formalizada a posição dos sujeitos processuais e desenvolvida a atividade instrutória tida por necessária, o segundo momento aplicativo do instituto da alteração substancial dos factos corresponde à prolação da sentença. As consequências decorrentes da inexistência de acordo, com aplicação da norma do n.º 1 do artigo 359.º do CPP, constituem questão prévia à apreciação do mérito, cuja cognição deve ter lugar na sentença, com precedência relativamente à enunciação dos factos provados e não provados e da pronúncia sobre a questão da culpabilidade. É, pois, processualmente incorreta a apreciação dessa questão em momento anterior à prolação da sentença.
«5. Por força do segmento final do n.º 2 do artigo 359.º do CPP, incumbe ao juiz decidir sobre o caráter autonomizável ou não autonomizável dos novos factos comunicados, para o efeito de procedimento pelo Ministério Público sobre os mesmos, devendo para tanto recorrer aos critérios jurídico-materiais que concretizam a identidade funcional pressuposta no funcionamento do efeito consuntivo do princípio ne bis in idem.
«6. Essa decisão é recorrível, indo além do simples alargamento da discussão ou da promoção do andamento do processo.»

O aresto tem igualmente relevo no que se refere à relação concursal entre os tipos de crime previstos nos artigos 152º-B e 277º do Código Penal:

«7. Entre a previsão do crime de violação das regras de segurança, constante no artigo 152.º-B do CP, e do crime de infração de regras de construção, constante no artigo 277.º do CP, existe uma larga zona de sobreposição, própria de uma relação de subsidiariedade, convergindo os dois tipos penais na defesa do bem jurídico integridade física e vida do trabalhador por conta de outrem.
«8. Encontrando-se o desvalor compreendido no objeto da comunicação de alteração substancial dos factos numa relação de unidade material de sentido com aquele presente na acusação, não podendo ser compreendidos um sem o outro, deve entender-se que os novos factos não são autonomizáveis.»

Quanto a esta vertente, relativamente à qual o sumário é omisso, releva, porque igualmente expressiva o seguinte trecho da fundamentação:

«A doutrina tem aceitado que os critérios de resposta ao problema encontram identidade com os que presidem ao concurso de infrações, remetendo para a respetiva dogmática – reconhecidamente complexa -, pois sobre os dois institutos incide primacialmente a vinculação decorrente do direito subjetivo fundamental enunciado no n.º 5 do art.º 29.º da Constituição. Na expressão de Sousa Mendes, «O conceito de factos autonomizáveis resume-se à possibilidade de os desligar daqueloutros que já constituem o objeto do processo, de tal sorte que, sem prejudicar o processo em curso, sejam criadas as condições para se iniciar um outro processo penal sem violação do princípio ne bis in idem (que ninguém seja julgado, no todo ou em parte, mais do que uma vez pelos mesmos factos!)» (“O Processo Penal em Ação: Hipótese e Modelo de Resolução, in Questões Avulsas de Processo Penal, 2000. p. 112, apud Cruz Bucho, ob. cit.[1] , p. 53, onde se traça um panorama da doutrina anterior a 2009 sobre o problema; vd. também, Sousa Mendes, “O regime da alteração substancial de factos no processo penal”, Que futuro para o Direito Processual Penal, Coimbra, 2009, pp. 758-764, e Lições de Direito Processual Penal, Coimbra, 2021, 149-151; pp. 55-60; Henrique Salinas, ob. cit. [2], pp. 413-427 e 475-479; e Frederico Isasca, Alteração Substancial dos factos, Coimbra, 1992, p. 203).
Trata-se essencialmente de determinar se os novos factos apurados formam, juntamente com os constantes da acusação, uma unidade de sentido, que não permite a sua cisão, por insuscetíveis de fundamentar uma incriminação autónoma em face do objeto do processo preconstituído. Na formulação de Marques Ferreira «factos não autonomizáveis são factos insuscetíveis de valoração jurídico-penal separados do objeto do processo em que foram descobertos» (“Da alteração dos factos objecto do processo penal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, fasc. 2, Abril/Junho de 1991, p. 253), sem esquecer que, como sublinha Germano Marques da Silva, «Crime diverso não é o mesmo que tipo incriminador diverso. É que o mesmo juízo de desvalor pode ser comum a diversas normas, a diversos tipos, que mantendo em comum o juízo de ilicitude divergem apenas na sua quantidade, não na sua essência, mas na gravidade» (Direito Processual Português, Lisboa, 2017, p. 385).
O despacho recorrido parece orientar-se também nesse sentido, concluindo pela «autonomia dos novos factos» em resultado de se estar perante relação de concurso aparente de normas, na forma de subsidiariedade, entre o tipo penal imputado na acusação – o crime de violação de regras de segurança, agravado pelo resultado, previsto e punido pelos artigos 152.º-B, n.ºs 1 e 4, alínea a), e 14.º, n.º 3 do CP – e aquele que se entende preenchido pela nova unidade fática composta por via da alteração substancial comunicada – o crime de infração de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços, agravado pelo resultado, p. e p. pelo artigos 277.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, e 285.º do CP, sendo esta última a norma penal prevalecente.
Contudo, sendo essa a súmula da parte inicial da decisão recorrida, seguem-se outras passagens, as quais apontam noutra direção. É o que decorre das referências à figura do concurso ideal, incluída na expressão «o facto naturalístico que serve de suporte às duas infracções (em concurso ideal) [é] o mesmo, a valoração social subjacente ao concreto caso trazido a tribunal é totalmente diverso» (sublinhado aditado), a que segue, com citação de Sousa Mendes alusão à figura do concurso real, as quais, na posição dogmática mais comum, são modalidade da categoria do concurso efetivo ou próprio de crimes, que se coloca a par da categoria do concurso aparente ou impróprio, com ele não se confundindo.
Importa ressalvar que estamos perante categorias dogmáticas, sem uma consagração normativa, relativamente às quais existem múltiplas posições doutrinárias, incluindo no sentido da recusa da figura concurso aparente, por «nociva para a normal tarefa dogmática da qualificação e individualização dos factos-crime» (Cristina Líbano Monteiro, Do concurso de crimes ao «concurso de ilícitos» em direito penal, Coimbra, 2015, em especial pp. 214 e 255 e segs), e de uma visão crítica relativamente aos contributos da doutrina do concurso de normas na perspetiva de uma conceção ampla do princípio ne bis in idem (Inês Ferreira Leite, ob. cit. [3] em especial vol I, pp. 812 e segs.). Reclama-se um critério dogmático-material menos formal e abstrato, mais coerente com o funcionamento da vertente substantiva ou material do ne bis in idem e orientado (corrigido) pelas valorações decorrentes das circunstâncias concretas do caso.
Segundo a lição de Figueiredo Dias (Direito Penal, Coimbra, 2019, 3.ª edição, pp. 1153-1167) e de Claus Roxin (Derecho Penal – Parte General, Tomo II, Civitas, 2014, §33, n.ºs 170 a 247, pp. 997-1025 tradução da 1.ª edição alemã, de 2003), no concurso aparente, impróprio ou de normas, não existe verdadeiramente um “concurso de leis” porque, na verdade, apenas uma delas é aplicável, em função de uma unidade normativa. As formas de unidade de lei e o modo como se devem distinguir mutuamente é objeto de visões diversas, sendo em todo o caso prevalecente o entendimento de que tais relações entre normas penais se podem resolver em torno de três classificações lógico-formais: especialidade, subsidiariedade e consunção. Diferentemente, quando a conduta global do agente, traduza uma unidade ou pluralidade de ações naturalísticas, que preenche mais que um tipo legal de crime, previsto em mais que uma norma concretamente aplicável, ou preenche várias vezes o mesmo tipo legal de crimes previsto pela mesma norma concretamente aplicável, verifica-se, por força do artigo 30.º, n.º 1 do CP, um concurso de crimes, real ou ideal. Trata-se, aí, de um concurso de crimes efetivo, puro ou próprio, portador de uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude e que, segundo o mandamento da esgotante apreciação contido na proibição jurídico-constitucional da dupla valoração, devem ser integralmente valorados para efeitos de punição.
Também a jurisprudência tem seguido essa posição dogmática mais tradicional, de que é exemplo especialmente claro o Acórdão do Supremo Tribunal de 27 de Maio de 2010 (Processo n.º 474/09.4PSLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt):
«I – A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no art. 30.º do CP, a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
II- O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.
III- A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal.
IV – Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).
V- O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).
VI- Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras.
VII- A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração – concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.
VIII- A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segundo regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção.
IX – Há consunção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cf. H. H. Jescheck e Thomas Weigend, “Tratado de Derecho Penal”, 5ª edição, pág. 788 e ss.).
X- A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.
XI- O bem jurídico, ainda numa projecção difusa de uma pluralidade de bens jurídicos e numa dimensão mais ampla, autonomiza-se de cada um dos concretos bens jurídicos que possam vir a ser individualmente afectados na respectiva titularidade concreta, sendo, por si, autonomamente e ex ante, considerado com relevante para justificar a definição de um crime de perigo».
Ou seja:
Estamos perante um Concurso real quando o comportamento do agente preencher vários tipos incriminadores e a sua responsabilidade contemplar todas essas infracções praticadas.
Já navegaremos por águas do Concurso aparente quando, aparentemente, na prática de um facto, convergem diversas disposições legais, mas na verdade só uma se lhe aplica, afastando todas as outras (sabemos que quando se pune um agente por uma situação de concurso aparente segundo as regras do concurso real, estamos a violar o princípio constitucional “ne bis in idem”, pois está se a valorar e punir mais do que uma vez o mesmo facto).
Nesse concurso aparente de normas, encontramos três modalidades:
• A relação de especialidade – Existe uma relação lógica de subordinação entre as normas, assim, quando um tipo legal é constituído a partir de outro, ou seja, se apresenta em relação àquele como qualificado ou privilegiado (ex. 132º, 133º e 134º em relação ao art. 131º todos do CP);
• A relação de subsidiariedade – Nestes casos existe uma intersecção de normas, cada norma pode ter um âmbito de aplicação autónomo, mas há também uma sobreposição, tornando-se uma subsidiária de outra, com aquela que tem a pena mais leve absorvida pela que tem a mais grave;
A relação de consunção – Existe nestes casos uma relação de instrumentalidade: a violação duma disposição legal é instrumental para a violação de outra enquanto que o concurso ideal e real são claramente diferenciáveis graças a conceitos básicos de unidade de acção e pluralidade de acções que respectivamente os acompanham, a unidade de lei pode dar-se em ambos os casos e apresentar-se, por ele, tanto em forma de “aparente (impróprio) concurso ideal” como na de “aparente (impróprio) concurso real”. De aí que a delimitação da unidade da lei haja de realizar-se com outros critérios. As questões que se colocam a respeito são objecto de uma forte polémica que alcança inclusive a da terminologia. A opinião dominante distingue entre especialidade, subsidiariedade e consunção.
Existe relação de especialidade quando um preceito penal contém todos os elementos de outro e só se diferencia do mesmo em oferecer, ao menos, um elemento adicional que capte o caso fáctico desde uma especial perspectiva. (…) Na especialidade concorre a lógica relação de dependência da subordinação, porque cada acção que viola o tipo de delito especial realiza por sua vez, necessariamente, o tipo geral, enquanto que não sucede o contrário. Isto conleva no direito penal que a lei geral retroceda: “lex specialis derogat legi generali”.
O contraponto da especialidade é a alternatividade. Concorre quando dois tipos contêm descrições da acção que pugnam entre si, de modo que se excluem reciprocamente, como o furto e a apropriação indevida.
(….)
A subsidiariedade significa que um preceito penal só deve aplicar-se de maneira auxiliar no caso de não intervir antes outro preceito.
Honing vê a razão material da subsidiariedade em que “diferentes proposições jurídico-penais protegem o mesmo bem jurídico em diferentes fases de ataque”. A estrutura lógica da subsidiariedade não é a subordinação, mas a da intercepção (interferência).
A relação de subsidiariedade depreende-se do teor literal da lei ou da interpretação da conexão de sentido entre vários preceitos penais. Distingue-se entre subsidiariedade expressa (formal) e subsidiariedade tácita (material). A invalidade auxiliar de uma lei pode regular-se de forma que tenha que dar preferência a qualquer outro preceito penal (subsidiariedade absoluta). Não obstante, geralmente só desfruta de preferência um tipo que castigue a acção com pena mais grave. Ademais, haverá de atender-se na maioria dos casos que o preceito penal subsidiário só deve ceder ante uma lei que compreenda acções com igual direcção de ataque, posto que aí radica a razão interna para a preferência da lei aplicável com carácter primário.»

+

[1] a obra citada de Cruz Bucho é Alteração Substancial dos factos e Processo Penal, Julgar, n.º 9, 2009,

[2] a obra citada de Henrique Salinas é Os Limites Objetivos do Ne Bis In Idem e a Estrutura Acusatória no Processo Penal Português, Lisboa, 2014

[3] a obra citada de Inês Ferreira Leite é Ne (Idem) Bis In Idem, Lisboa, Vol. I, Lisboa, 2016

 

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