Num briefing com órgãos de comunicação social, agendado para dia 22 de junho, pelas 11h, e efectivado nas instalações do Conselho Superior da Magistratura, visando a apresentação do Relatório Anual daquele Conselho referente ao ano 2021, o respectivo Presidente, Juiz Conselheiro Henrique Araújo, a propósito da morosidade dos processos, reiterou uma ideia, que encontro expressa neste “take” da oficial agência LUSA do dia seguinte a meio da tarde:
«Sem indicar nomes, Henrique Araújo disse não compreender o discurso sobre a morosidade da justiça nacional, embora reconheça que nos processos relativos à criminalidade económico-financeira e nos megaprocessos a lentidão possa ser maior, mas que tal não é culpa dos tribunais ou dos juízes, considerando que há excesso de garantias de defesa e que a lei contempla a hipótese de “interpor recursos por tudo e por nada”, atirando o ónus da resolução deste problema para o poder legislativo.»
A afirmação é apta a gerar polémica e gerou e talvez o seu autor a procurasse por não ser a primeira vez que vem ao tema.
Trata-se, quando a este modo de dizer, de uma sobre-simplificação, por várias razões, isto deixando de lado a questão de o excesso temporal de pendências processuais ser problema que se encontra, e de modo aliás endémico, na jurisdição administrativa e fiscal e em outros segmentos da jurisdição civil.
Sobre-simplificação, primeiro, porque a parte essencial da demora nos processos criminais ocorre amiúde na fase de inquérito até à acusação, fase a cargo do Ministério Público.
Segundo, porquanto a essa demora não é indiferente tratar-se em muitos casos de processos complexos, complexidade que decorre da actuação pelo Ministério Público do mecanismo processual da conexão, tornando-os, como passou a ser designado na gíria, “mega-processos” ou “maxi-processos”.
Terceiro, uma vez que, beneficiando de prazos meramente ordenadores – a expressão “máximos” duas vezes prevista no artigo 276º do Código de Processo Penal para a duração do inquérito foi tornada letra morta por uma jurisprudência complacente – de novo o Ministério Público goza, como único limite legal para encerrar as suas averiguações pré-acusatórias, o do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Ora culpabilizar os arguidos quando a fase de inquérito é aquela que os seus advogados não dominam, a que corre, nos casos mais complexos, por via de regra do que seja o regime de segredo de justiça, é algo que a lógica, antes dos factos, não permite sustentar.
Quarto, porque o sistema processual penal já prevê um conjunto de meios processuais visando a celeridade – e foi sob a bandeira da celeridade que se elaborou o Código de Processo Penal de 1987, nomeadamente:
-» o incidente da aceleração processual, esvaziado que este esteja embora de efeito prático directo, por não poder o Conselho Superior da Magistratura, enquanto órgão administrativo, proferir actos intra-processuais
-» na fase de instrução, desde logo a irrecorribilidade do despacho de pronúncia que seja obediente à acusação do Ministério Público, para não falar nos poderes oficiosos amplamente conferidos por lei ao juiz de instrução criminal, todos irrecorríveis, a juntar à irrepetibilidade, como actos de instrução, dos actos de prova testemunhal que tenham sido praticados no inquérito e também isso irrecorrível
-» na fase de julgamento, a possibilidade de rejeição liminar da acusação e a caducidade da prova em caso de excesso de prazo de adiamento, bem como o favor à oficiosidade concedida ao juiz no que diz respeito ao modo de disciplinar as audiências
-» na fase de recurso, a possibilidade de rejeição liminar dos mesmos, tanto na instância recorrida como no tribunal ad quem
-» no que se refere ao recurso para o Tribunal Constitucional, a possibilidade de este fazer órgão jurisdicional quebrar o efeito suspensivo do recurso, tornando-o meramente devolutivo
-» em geral, a possibilidade de separação processual quando a conexão puser em crise a pretensão punitiva do Estado.
Ante isto, as questões. Haverá julgamentos que duram meses? Há. Por experiência estive por mais de uma vez em audiências que duraram mais do que nove meses, há quem tenha sofrido presença em mais. Sim, mas há inquéritos que duram anos.
Claro que o discurso do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, omitindo o que se passa em sede de mora na fase a cargo do Ministério Público, escolhe como seu alvo os recursos criminais e de todos eles os interpostos pelos arguidos e de todos os recursos de arguidos os envolvidos em casos de criminalidade económico-financeira. Implícito a isso está a noção: porque têm meios de fortuna para essa actividade recursiva.
Transpostas as coisas para este plano, tornado o tema uma questão de justiça de ricos e poderosos, permito-me, em contraponto, suscitar estas perguntas:
Não será a acusação pública, ao formar mega-processos, cujo acompanhamento pelos advogados, durante meses e anos, implica um custo que muitos poucos podem assegurar – ademais com o património arrestado, como é tão frequente – que gera essa justiça de classe que se quer agora diabolizar?
E não estará isto a suceder também em casos que nem económico-financeiros são?
E não será essa impossibilidade de – fora do apoio judiciário sem então o direito a advogado de livre escolha – os próprios ofendidos, ao lado dos arguidos, terem assistência jurídica capaz, tema em que está em caso um princípio básico de justiça?
E a somar a tudo isto, e já é muito, permito-me uma outra pergunta: e não será a “processualite” amiúde critério decisório por algumas instâncias de recurso que, levando à revogação das decisões e ao reenvio dos processos, mandados baixar à instância recorrida, outra causa da morosidade, que é alheia ao excesso de garantismo, aos arguidos, aos casos económico-financeiros?
E, enfim – enfim, só mesmo para fechar por hoje – não terá sido a subtracção de um grau de jurisdição nos recursos de revista, o asfixiamento do recurso sobre a matéria de facto, que terá criado uma pressão complementar sobre a recorribilidade para o Tribunal Constitucional, que este tem, aliás, jugulado, e em termos tais que raro é aquele recurso que não se fica pela rejeição sumária logo confirmada pela conferência?
Indo ao tema que foi frase do Senhor Presidente do Conselho Superior da Magistratura: haverá recursos “quase por tudo e por nada”? Não duvido que em alguns casos sim, não só de arguidos, não só em caso de crimes económico-financeiros.
Mas está o sistema dotado de meios para enfrentar o abuso do processo? Creio que sim e foi assim pensado.
Estatuiu-o a Lei de autorização legislativa n.º 43/86 de 26 de Setembro, ao abrigo do qual o Código de Processo Penal foi delineado e cito o que se visou:
«1) Construção de um sistema processual que permita alcançar, na máxima medida possível e no mais curto prazo, as finalidades de realização da justiça, de preservação dos direitos fundamentais das pessoas e de paz social;
«2) Simplificação, desburocratização e aceleração da tramitação processual compatíveis com a realização das finalidades assinaladas, evitando-se todavia a criação de novos formalismos inúteis;»
Daí em diante as reformas do mesmo Código [e vamos na 46ª] foram no sentido do cerceamento progressivo dos meios processuais de acção e das possibilidades de se recorrer, nomeadamente para o Supremo Tribunal de Justiça, que é presidido pelo Presidente do Conselho Superior da Magistratura.
Mas já agora também que se está num tentativa de discurso ponderado uma última pergunta: é justo tornar isso do excesso de garantismo bandeira, como se as disfunções do sistema processual penal, no que se refere à duração dos processos, se resumissem a tal, como se a delonga processual fosse, afinal, o tema maior do que se pode criticar no sistema de justiça, como se fossem, afinal, os arguidos e os processos económico-financeiros em que estão envolvidos, os geradores únicos de todos os males? Não é seguramente. E, por isso, não deve ser.
Creio, pois, que uma análise serena do que precisa de remédio, ajuda a remediar. A crispação verbal, essa, abre por sobre o problema a polémica e inviabiliza a solução para uma justiça mais eficaz. É que ser rápida pode ser sinónimo de menos ponderada. Com diz o povo: depressa e bem há pouco quem.
Com todo o respeito e no caso é muito.