Quando da elaboração do Código de Processo Penal de 1987 chegou a conjecturar-se a eventualidade de a fase de julgamento ser cindida em duas, consagrando o que na terminologia francesa se denominava a césure, havendo a clássica fase destinada a apurar a materialidade em julgamento – a que na terminologia inglesa se denominaria a conviction – e, havendo lugar a condenação, uma outra orientada a encontrar a medida da pena em concreto – a sentencing. Na primeira conheciam-se os factos, na segunda a pessoa que estivesse por qualquer forma ligado à sua prática.
O sistema, a ter sido consagrado em lei, tinha uma dupla vantagem:
-» a de impedir que o apuramento dos factos fosse efectuado já tendo em vista as condições pessoais de quem estivesse a ser julgado por eles, nomeadamente o seu passado criminal, e se cometesse o erro de extrapolar de uma prévia prática de factos semelhantes a conclusão de que também no caso sub iudice o arguido tivesse reiterado a conduta
-» a de dar oportunidade a que a reconstituição da personalidade se fizesse com detalhe e não tudo amalgamado, e para isso se convocaria o saber multidisciplinar de técnicos de diversas índole.
Razões pragmáticas – as do costume – levaram a que o sistema ficasse sujeito a um travão legal que logo o inutilizaria e esse foi o de se ter consagrado a sua facultatividade, o que ficou expresso pelas expressões “pode” e “logo que o considerar necessário” consignada no n.º 1 do artigo 370º:
«1 – O tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência, o considerar necessário à correcta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respectiva actualização quando aqueles já constarem do processo.
«2 – No caso de arguido menor, se o relatório social ou a informação dos serviços de reinserção social não se mostrar ainda junta ao processo, deve a respetiva junção ocorrer no prazo de 30 dias, salvo se, fundamentadamente, se justificar a respetiva dispensa face às circunstâncias do caso e desde que seja compatível com o superior interesse do menor.
«3 – Independentemente de solicitação, os serviços de reinserção social podem enviar ao tribunal, quando o acompanhamento do arguido o aconselhar, o relatório social ou a respectiva actualização.
«4 – A leitura em audiência do relatório social ou da informação dos serviços de reinserção social só é permitida a requerimento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo seguinte.
«5 – É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 355.º».
O sistema agravou-se porque, quando da revisão levada a cabo em 1998 [Lei n.º 59/98, ver aqui], se revogou o que era na versão inicial do Código o n.º 2 deste artigos no qual se consignava um caso de obrigatoriedade:
«A solicitação referida no número anterior é obrigatória quando o arguido, à data da prática do facto, tivesse menos de 21 anos e for de admitir que lhe venha a ser aplicada uma pena de prisão efectiva ou uma medida de segurança de internamento superiores a três anos ou uma medida alternativa à prisão que exija o acompanhamento por técnico social.»
E eis o que temos. [vejam-se aqui e aqui, exemplos jurisprudenciais de acolhimento da lógica imanente a um tal modelo e note-se, lendo a partir daqui, a revivescência do sistema em francesa nesta iniciativa legislativa de 2019].
Ficamos hoje pelo eventual relatório social, a cargo dos serviços de reinserção social [ver aqui] e pela prova que o arguido traga a julgamento, amiúde as rebaixadas testemunhas ditas “abonatórias”, nem sempre loquazes, amiúde louvaminheiras e ouvidas por vezes com alguma significativa reserva pelo tribunal.
Tornado facultativo, o relatório social quando ausente pode, porém, levar a situações que ponham em causa o apuramento do necessário para a individualização da pena aplicável. E eis o que integrou o objecto do Acórdão da Relação de Coimbra de 01.06.2022 [proferido no processo n.º 218/21.2GCCVL.C1, relator Paulo Guerra e texto integral aqui], o qual, conhecendo oficiosamente um vício que não havida sido alegado pelo Ministério Público no seu recurso – no qual o recorrente pretendia que fosse decretada pena efectiva de prisão e não pena suspensa – no caso o de insuficiência da matéria de facto para a decisão [artigo 410º, n.º 2, a), estatuiu:
«I – A matéria sobre as condições pessoais do arguido e sua situação económica – [cf. al. d), do n.º 2, do artigo 71º do Código Penal], é essencial para as próprias opções, em sede de penas, tomadas pelo tribunal.
«II – Esse relatório não é obrigatório mas é peça essencial para a operação da determinação da medida da pena, sobretudo em casos em que se cogita a aplicação de penas privativas de liberdade relativamente a um arguido não presente em audiência e estando ele à completa revelia do processo.
«III – A não realização de relatório social não acarreta o cometimento de qualquer nulidade ou mesmo de qualquer irregularidade.
«IV – Porém, a falta de elementos probatórios bastantes, que pudessem ser veiculados através desse relatório social aos autos, por forma a poderem vir ancorar a espécie e medida da pena a aplicar, poderá constituir o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP].
«V – Nessas circunstâncias, impõe-se a anulação da sentença e a reabertura da audiência para a determinação da sanção (artigo 371º do CPP), a realizar pelo mesmo Tribunal, assente que este reenvio parcial tem por objectivo evitar a repetição do julgamento perante o mesmo Tribunal que já tomou posição anterior sobre a valia da prova produzida.»
Para concluir que uma tal omissão integra o referido vício louva-se o aresto aqui citado numa ampla jurisprudência de que cita «entre outros, Ac. do STJ de 06/11/2003, Proc. nº 03P3370; Ac. R. de Lisboa de 10/02/2010, Proc. nº 372/07.6GTALQ.L1-3; Acs. R. de Guimarães de 05/06/2006, Proc. nº 765/05-1 e de 11/06/2012, Proc. nº 317/11.9GTVCT.G1; Acs. R. de Coimbra de 05/11/2008, Proc. nº 268/08.4GELSB.C1 e de 23/02/2011, Proc. nº 83/09.8PTCTB.C1; Acs. R. do Porto de 18/11/2009, Proc. nº 12/08.6GDMTS.P1 e de 02/12/2010, Proc. nº 397/10.4PBVRL.P1; Ac. R. de Évora de 20/11/2012, Proc. nº 186/09.9GELL.E1»
Acolhida esta qualificação, questão emergente é a consistente em saber qual a solução processual a dar ao caso e esta é também uma parte relevante do decidido:
«Aqui chegados, comungamos da opinião dos relatores do Acórdão da Relação de Lisboa de 23/5/2017 (Pº 307/14.0PEAMD.L1-5), segundo a qual:
«Constatada a existência deste vício, é entendimento maioritário na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores que importa determinar o reenvio do processo para novo julgamento, cingido à investigação dos factos relativos à situação pessoal e económica do arguido, nos termos dos artigos 426º, nº 1 e 426º-A, do CPP.
Salvaguardando o devido respeito por tal entendimento que, obviamente, é muito, perfilhamos porém a posição sustentada pelo Conselheiro Simas Santos expressa na declaração de voto lavrada no Ac. do STJ de 29/04/2003, Proc. nº 03P756, disponível em www.dgsi.pt, em que se afirma “a meu ver impunha-se a anulação do acórdão e a reabertura da audiência para a determinação da sanção (art. 371º do CPP), a realizar pelo mesmo Tribunal. O reenvio tem por objectivo evitar a repetição do julgamento perante o mesmo Tribunal que já tomou posição anterior sobre a valia da prova produzida.
Ora, no caso, trata-se de prova suplementar, ainda não produzida e em relação à qual o tribunal recorrido ainda não assumiu posição” – perfilando-se também com esta posição os Acórdãos da Relação de Guimarães supra mencionados e bem assim o Acórdão deste Tribunal da Relação e Secção de 10/09/2013, Proc. nº 58/12.0PJSNT.L1-5, consultável no mesmo sítio, por nós relatado».»