Skip to main content
Uncategorized

Lei incerta e modo de vida

Tornada ilusória e como tal meramente proclamatória, a garantia constitucional inerente ao princípio da legalidade, naquela vertente que obriga à tipicidade incriminatória, tem convivido com inúmeras previsões legais de enunciados com conteúdo vago, preceitos de extensão indeterminada, conceitos vulgares sem sentido jurídico certo. Um desses casos é, a meu ver, o da qualificação do furto em função de o agente do crime fazer disso modo de vida, ou seja a alínea h) do n.º 1 do artigo 204º do Código Penal, quando assim estatui:

«1 – Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:

[…]

h) Fazendo da prática de furtos modo de vida;

[…]

é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.»

O Tribunal Constitucional, que tem, aliás, coexistido com situações deste perfil [vejam-se como decisões antecedentes os  acórdãos nsº 20/2019, 168/99, 76/2016, 852/2014,  338/03 e 545/2000, citados pelo Ministério Público], e salvo assim a exequibilidade de um sistema penal que, de outro modo, entraria em colapso face à generalizada prática deste modo vácuo de se legislar, dissertou sobre o tema no seu Acórdão n.º 196/22 [3ª Secção, relatora Joana Fernandes Costa, texto integral aqui], rejeitou que também este preceito, cujo conceito reconheceu ser polissémico, pudesse estar ferido de desconformidade com a Lei Fundamental.

O que não encontro em tal decisão [e admito que por não corporizar o objecto do recurso] é a medida em que possa integrar o conceito de “modo vida” o reconhecimento implícito de outros furtos que não tenham sido, afinal, objecto de decisões condenatórias transitadas em julgado, ou seja, até que ponto é que o tribunal que aceite ser aquele furto que julgue, parte de um todo, que integre o dito “modo de vida” do agente não estará a julgar implicitamente o que não  lhe surge como concurso de crimes objecto de uma acusação ou para efeitos de cúmulo jurídico, mas antes como mero afloramento indiciário de uma suposta conduta pretérita pela qual o agente não foi condenado e pela qual o tribunal não poderá aliás condená-lo, salvo naquilo que integre a agravação da pena.

Estamos, pois, ante a indeterminação da fórmula e a incerteza na previsão do resultado.  Por isso a foto do físico Werner Heisenberg, que deu vida à teoria da incerteza no contexto da mecânica quântica.

Leia-se a fundamentação:

«É sabido que o princípio da legalidade penal constitui um elemento central do regime constitucional da lei penal nos Estados de Direito democráticos, encontrando-se expressamente consagrado no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, enquanto garantia pessoal de não punição fora do âmbito de uma lei escrita, prévia, certa e estrita.

«Tendo como principal finalidade assegurar que o Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição) protegerá o indivíduo não apenas através do direito penal, mas também do direito penal (Claus Roxin, Derecho Penale, Parte Generale, Tomo I, 2.ª edição, trad. de Diego-Manuel Luzon Peña e Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Madrid, 1997, Civitas, p. 137), o princípio da legalidade penal constitui, juntamente com os princípios da culpa, da presunção de inocência e do direito ao silêncio, um limite ao desempenho da função punitiva do Estado. Deste ponto de vista, estavelmente consolidado na jurisprudência constitucional, o princípio da legalidade penal opera como um princípio defensivo, que constitui, por um lado, «a mais sólida garantia das pessoas contra possíveis arbítrios do Estado» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 1974, p. 96; v. ainda o Acórdão n.º 324/2013), e se apresenta, por outro, como uma condição de previsibilidade e de confiança jurídica, no sentido em que permite a cada cidadão dar-se conta das condutas humanas que, em cada momento, relevam no âmbito do direito criminal (v., entre outros, os Acórdãos n.ºs 41/2004, 587/2004 e 606/2018).

«[…] Baseando-se a tese da recorrente no argumento segundo o qual o elemento qualificador previsto na alínea h) do n.º 1 do artigo 204.º do Código Penal não dispõe de determinabilidade suficiente para permitir aos respetivos destinatários a antecipação dos pressupostos da agravação da sua eventual responsabilidade, é à luz do princípio da legalidade penal, na dimensão de lei certa, que cumpre apreciar a conformidade constitucional da norma impugnada.

«7. Com a exigência de lei certa quer-se significar que a lei que cria ou agrava responsabilidade criminal deve especificar suficientemente os factos que integram o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos da aplicação de uma pena ou medida de segurança) e definir as penas (e as medidas de segurança) que lhes correspondem.

«Nesta aceção, o princípio da legalidade penal tem como corolário o princípio da tipicidade, cujo sentido é o de impor ao legislador o ónus de levar a caracterização do ilícito típico — simples e qualificado — a um ponto que permita que, logo em face dessa caracterização, «se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos» (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo ICoimbra, Coimbra Editora, 2019, p. 219).

«Sem que isso signifique o deflacionamento da função de garantia desempenhada pelo tipo legal, o Tribunal Constitucional vem igualmente reconhecendo que o princípio da legalidade penal não impõe ao legislador que, ao definir o universo das ações e omissões proibidas, «se socorra sempre e  de formulações normativas integralmente descritivas e fechadas» (Acórdão n.º 606/2018).

«Para além das dificuldades que a própria natureza da linguagem, não raras vezes polissémica, logo à partida colocaria a qualquer tentativa de predeterminação integral da totalidade dos elementos constitutivos do ilícito, bem como do carácter lacunoso em que inevitavelmente e incorreria qualquer legislação comprometida com uma definição fortemente casuística do facto punível, a jurisprudência constitucional vem reconhecendo também que a crescente complexidade das sociedades contemporâneas, caracterizada por uma diversidade cada vez maior de formas de atuação e de interação com significado para o Direito, tornou inevitável o recurso, no âmbito da caracterização do ilícito típico e das circunstâncias que conduzem à respetiva qualificação, a «elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e fórmulas gerais de valor» (Figueiredo Dias, Direito Penal…., p. 219), em detrimento de fórmulas incriminadoras de conteúdo integralmente pré-determinado (v. o Acórdão n.º 608/2018).

«Neste contexto, a função do princípio da legalidade é a de estabelecer limites à abertura dos tipos penais, assegurando que, «apesar da indeterminação inevitavelmente resultante da utilização d[aqueles] elementos, do conjunto da regulamentação típica» continue a derivar «uma área e um fim de proteção da norma claramente determinados» (idem). Como se afirmou no Acórdão n.º 168/1999 (e se repetiu, designadamente, nos Acórdãos n.ºs 383/2000, 93/2001, 352/2005, 20/2007 e 76/2016), «averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima».

«8. Partindo da premissa segundo a qual o princípio da tipicidade impõe à lei penal que apresente «suficiente densidade» ¾ isto é, que «descreva o mais pormenorizadamente possível» a conduta proibida, detalhando-a «suficientemente» ou com «suficiente clareza» (Acórdão n.º 168/1999) — e ao legislador o dever de «reduzir ao mínimo possível o recurso a conceitos indeterminados» (Américo Taipa de Carvalho, Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, I, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017, p. 488; no mesmo sentido, v. os Acórdãos n.º 146/2011, 105/2013 e 572/2019), a jurisprudência constitucional cedo procurou definir um ponto de referência que permitisse estabelecer a partir de que grau de indeterminação ou imprecisão nos deveremos considerar perante uma violação da exigência de certeza da lei.

«Logo no Acórdão n.º 93/2001, o Tribunal sublinhou que o princípio da tipicidade criminal, ao exigir «uma suficiente especificação dos factos que integram o tipo legal de crime», veda a edição de normas incriminadoras cujo conteúdo não possa impor-se «autónoma e suficientemente, permitindo um controlo objetivo na sua aplicação individualizada e concreta»; isto é, exclui a possibilidade do recurso a conceitos «menos precisos» sempre que «a possibilidade de compreensão e controlo do desvalor expresso no tipo legal deixa de existir» por causa disso (Maria Fernanda Palma, Direito Penal. Conceito material de crime, princípios e fundamentos, Lisboa, AAFDL, 2017, p. 131).

«Assim, sempre que a descrição da matéria proibida incluir o emprego de elementos normativos – isto é, elementos que, ao contrário dos elementos descritivos, «só podem ser representados e compreendidos sob a lógica pressuposição de uma norma ou de um valor, sejam especificamente jurídicos ou simplesmente culturais […]» (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal…, p. 335) —, o decisivo é que a determinação do facto punível continue a ocorrer na medida necessária a proporcionar aos tribunais um quadro suficientemente delineado em face do qual «possam fazer, ainda e sempre, um exercício de aplicação do direito e não já de criação de direito» (Acórdão n.º 20/2019).

«À luz desta orientação, Tribunal Constitucional teve já oportunidade de aferir da compatibilidade com o princípio da legalidade penal de um significativo conjunto de elementos normativos e clausulas gerais, tendo concluído pela viabilidade constitucional do emprego: (i) do conceito de «documento autêntico ou com igual força» na tipificação do crime de falsificação de documento (Acórdão n.º 383/2000); (iii) dos advérbios «nomeadamente» e «fundamentalmente» para definir o nível de dependência da sorte suposto pelo conceito penalmente relevante de jogos de fortuna ou azar (Acórdão n.º 93/2001); (iii) dos conceitos de «constrangimento», «importunar» e «contacto de natureza sexual», ainda que desacompanhados da especificação dos concretos meios utilizados nesse contacto, na previsão do crime de importunação sexual (Acórdão n.º 105/2013); (iv) da fórmula «não se encontre em condições de realizar tal atividade com segurança» para caracterizar a atuação do condutor sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica, suscetível de relevar criminalmente (Acórdão n.º 606/2018); e (v) do conceito de «meio insidioso» para descrever uma das circunstâncias em que o ato de matar é suscetível de revelar «a especial censurabilidade ou perversidade» que fundamenta o crime de homicídio qualificado (Acórdão n.º 20/2019).

«A questão a que importa seguidamente responder é a de saber se a norma que pune mais severamente a subtração de coisa móvel alheia (artigo 203.º do Código Penal) quando realizada por quem faz da prática de furtos modo de vida impõe conclusão diversa.

«9. O artigo 204.º do Código Penal enumera as circunstâncias que conduzem à qualificação docrime de furto previsto no artigo 203.º do mesmo diploma, agrupando-as segundo dois diferentes níveis de agravação. A qualificativa prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 204.º,  ¾ que remonta, aliás, ao Código Penal de 1982 (artigo 297.º, n.º 2, alínea e)) ¾, integra o primeiro daqueles níveis, fazendo corresponder uma «pena de prisão até 5 anos ou pena de multa até 600 dias» à prática do crime de furto, sempre que o agente faça dela «modo de vida».

«É verdade que, em si mesmo, o conceito de «modo de vida» é relativamente polissémico, no sentido em que, ao remeter para a forma como o indivíduo vive, o seu significado pode conhecer algumas variações de acordo com o contexto em que é empregue. Todavia, quando integrado na fórmula fazer de uma certa atividade — rectius, de uma certa prática — modo de vida, esse grau de polissemia detetável à partida decresce consideravelmente: no plano puramente semântico, fazer de determinada prática criminosa modo de vida não poderá significar coisa muito diferente do que tomar essa prática como fonte recorrente ou persistente de proveitos ou benefícios, designadamente daqueles que são necessários à vida do agente em comunidade.

«Não é outro, aliás, o critério com base no qual o âmbito de aplicação da qualificativa prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 204.º do Código Penal vem sendo delimitado na doutrina e na jurisprudência. Com efeito, considera-se que pratica crimes de furto como modo de vida «quem tem a intenção de conseguir uma fonte contínua de rendimentos com a repetição mais ou menos regular de factos dessa natureza» e se dedica a essa atividade «como se fosse uma profissão ou um emprego, ainda que tenha outras fontes de rendimento […]» (M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Código Penal, Parte Geral e Especial, Coimbra, Almedina, 2015, 2.ª edição, p. 893). Trata-se daquela atividade de que o agente do crime, exclusiva ou concorrentemente, se sustenta, realizando (e revelando-se disponível para realizar) uma pluralidade de ações do mesmo tipo (v. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.09.2021, Processo n.º 184/18.1PBCVL.C2.S1, disponível in www.dgsi.pt).

«A alegação de que a norma em causa «[t]anto abrange o indivíduo que subsiste única e exclusivamente dos furtos que vai cometendo, suportando todas as despesas e provindo às suas necessidades apenas graças a tais crimes, como o cleptómano que tem um emprego mais do que adequado a proporcionar-lhe um rendimento suficiente», é, para além de controversa no plano do direito ordinário – veja-se a relevância da distinção traçada entre habitualidade e modo de vida (cf. José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 71) –  insuscetível de comprovar a insuficiente determinabilidade do tipo qualificador.

«Com efeito, o elemento de agravação opera somente na presença de uma «prática de furtos» anterior, dispondo por isso de uma base factual objetiva que se traduz numa série mínima de atos criminosos da mesma natureza. A exigência de que dessa prática o agente venha «fazendo modo de vida» serve apenas para, em face dessa pluralidade de infrações, restringir o âmbito de aplicação da qualificativa às hipóteses em que os atos criminosos em sequência apresentem uma particular conexão entre si, que ultrapasse a mera reiteração tout court de ilícitos da mesma natureza. É o tipo de conexão exigida entre os furtos em sucessão ¾ e apenas isso ¾ que o conceito de modo de vida se destina a concretizar.

«É certo que, à semelhança do que ocorre com qualquer outro elemento normativo ou conceito indeterminado, tal concretização exige do intérprete-aplicador uma valoração complementar. Simplesmente, como evidenciado até pelo consenso gerado na comunidade jurídica sobre o que significa fazer da prática de furtos modo de vida, tal valoração não tem o alcance que lhe atribui a recorrente, estando longe de indiciar a transferência para o julgador de um poder de determinação autónoma dos furtos mais severamente puníveis.

«Em suma: a inclusão do conceito de «modo de vida» na tipificação da qualificativa do crime de furto não põe em causa a apreensão pelos destinatários da lei penal das condições em que, por força da alínea h) do n.º 1 do artigo 204.º do Código Penal, há lugar à agravação da pena aplicável, sendo insuscetível por isso de comprometer ou de anular a função de garantia desempenhada pelo tipo legal.»

Follow by Email
Facebook
Twitter
Whatsapp
LinkedIn