O tema de a suspensão da pena por crime fiscal estar condicionada ao pagamento do tributo respectivo tem sido polémica, ao colocar em confronto o artigo 14º, n.º 1 do RGIT e artigo 50º, n.º 1 do Código Penal
O artigo 14º, n.º 1 do RGIT prevê:
«1 – A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.»
É este o preceito do artigo 50º, n.º 1 do Código Penal:
«O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»
Sopesando os dois preceitos, determinou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para uniformização de jurisprudência n.º 8/2012. [publicado no Diário da República n.º 206, Série I de 2012-10-24, ver aqui]:
«No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia»
O referido aresto foi votado com inúmeros votos de vencido, por ser controversa a decisão, rememorando-se o sentido expresso por cada um dos subscritores:
«Raul Eduardo do Vale Raposo Borges (relator) – Isabel Celeste Alves Pais Martins (vencida conforme declaração de voto do Exmo. Conselheiro Santos Cabral) – Manuel Joaquim Braz (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) – José António Carmona da Mota – António Pereira Madeira – José Vaz dos Santos Carvalho – António Silva Henriques Gaspar – António Artur Rodrigues da Costa (vencido, conforme declaração de voto do Exmo. Conselheiro Santos Cabral) – Armindo dos Santos Monteiro – Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor – José António Henriques dos Santos Cabral (vencido de acordo com declaração que junto) – António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes (voto a decisão) – José Adriano Machado Souto de Moura – Eduardo Maia Figueira da Costa (vencido nos termos da declaração do Conselheiro Santos Cabral) – António Pires Henriques da Graça (em conformidade ainda com a fundamentação que junto) – Luís António Noronha Nascimento.»
Dá isto contexto ao que sentenciou o Acórdão da Relação de Évora de 24.05.2022 [proferido no processo n.º 59/19.7T9SSB.E1, relatora Maria Clara Figueiredo, texto integral aqui]:
«I – A densificação da estatuição do artigo 14.º do RGIT impõe a conclusão de que, em caso de condenação por crime de abuso de confiança fiscal ou à segurança social que preveja em alternativa pena de prisão ou de multa, escolhida a pena de prisão e optando-se depois pela suspensão da execução de tal pena, haver que ponderar a razoabilidade da imposição da condição estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 1 do RGIT, considerando o concreto e real circunstancialismo fáctico de vida do devedor, com particular enfoque na sua situação económica, conforme superiormente decidido no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012 de 12 de setembro.
«II – Os crimes tributários previstos apenas com pena de prisão – como o dos presentes autos – encontram-se fora do âmbito de aplicação da jurisprudência fixada pelo AUJ 8/2012, sendo que o princípio da legalidade determinará que se dê aplicação à norma especial prevista no artigo 14.º do RGIT, respeitando-se a imperatividade da imposição da condição que o mesmo consagra em caso de opção pela pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão, sob pena de desaplicação de lei expressa»
Qual a razão da opção pela “lei expressa” e desaplicação do sentido uniformizado pelo STJ?
-» porque opção diversa conduziria à solução «a nosso ver inaceitável, consubstanciada na aplicação, nos crimes de natureza mais grave, da suspensão da execução da pena de prisão sem sujeição à condição de pagamento imposta imperativamente pelo artigo 14º do RGIT»
-» «quando o artigo 14.º do RGIT foi aprovado já existia o atual artigo 51.º, n.º 2 do CP, o que suporta a interpretação de tal preceito no sentido de que a opção feita pelo legislador terá sido plenamente consciente, tendo assentado no entendimento de que, atendendo aos interesses em causa, o pagamento dos valores em dívida ao Estado pelo condenado constitui sempre uma exigência “razoável”, que se encontra numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins que a norma visa prosseguir.»
-» que o Tribunal Constitucional «tem vindo a confluir no sentido da não inconstitucionalidade do artigo 14º do RGIT, concretamente no que tange à interpretação segundo a qual a imposição da condição tem caráter imperativo e não depende da realização de qualquer juízo de razoabilidade por parte do julgador» [citam-se, para além do recente Acórdão n.º 51/2020 de 16 de Janeiro (ver aqui), os acórdãos daquele TC nºs 335/2003, 376/2003 309/2006, 327/2008, 587/2009 e, mais recentemente, as Decisões Sumárias nºs 312/2011, 522/2012, 68/2015 e 606/2016].
De relevo esta apontamento informativo do aresto em causa:
«Com vista à fixação de jurisprudência relativamente à concreta questão da necessidade de realização do juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, em todos os crimes de natureza tributária ou apenas nos que são punidos alternativamente com prisão e multa, foi recentemente interposto recurso para o STJ, tendo sido proferido o Acórdão do STJ de 27.01.2021, relatado pelo Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha que determinou que o recurso prosseguisse, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, 2.ª parte do CPP.»