A punição do concurso de crimes, seja o tema do cúmulo jurídico, tem dado origem a problemas vários, ainda não totalmente pacificados. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2022 [proferido no processo n.º 129/13.5TASEI.C1.S1, relator Orlando Gonçalves, texto integral aqui] veio dilucidar uma das questões, a da prática jurisprudencial de se formar o cúmulo pelo incremento de cada pena parcelar numa proporção não superior a 1/4 ou pela ponderação do “ponto médio” entre os limites máximos e mínimos de cada pena.
«I – A doutrina, como a jurisprudência, vêm entendendo que o modelo de punição do concurso de crimes consagrado no art. 77.º do CP, sendo um sistema de pena conjunta, não é construído, porém, de acordo com o princípio de absorção puro, nem com o princípio da exasperação ou agravação, nos termos definidos, mas sim de acordo com um sistema misto, que vem sendo chamado de sistema do cúmulo jurídico.
«II – A pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 71º, n.º 1, um critério especial estabelecido no art. 77.º, n.º 1, 2.ª parte, ambos do CP.
«III – Os parâmetros indicados no art. 71.º do CP, servem apenas de guia para a operação de fixação da pena conjunta, não podendo ser valorados novamente, sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais fatores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes.
«IV – O recorrente […] também não indica qualquer norma que estabeleça critérios aritméticos, matemáticos, na determinação da pena única. No entanto, indica a existência de um critério jurisprudencial, que resultará da “prática jurisprudencial”, de sobre cada pena parcelar (das menos elevadas), se aplicar uma proporção não superior a ¼.
«V – Existe, efetivamente uma corrente jurisprudencial que perante a constatação de grande amplitude na moldura penal do concurso, estabelece uma fração variável nas penas parcelares a somar à pena mais grave, com vista a consagrar uma alegada objetividade e igualdade entre os arguidos nas operações de fixação de penas conjuntas.
«VI – Esta corrente foi já de algum modo ensaiada quando entrou em vigor o CP de 1982, para as penas singulares. Alguma jurisprudência, de que são exemplos os acórdãos do STJ de 30-11-1983 e de 19-12-1984 (cf., respetivamente, BMJ n.º 331, p. 363 e BMJ n.º 342, p. 233) também seguiu o entendimento de que face à maior amplitude dos limites máximos das penas relativamente ao CP anterior, se devia definir um ponto para determinação das penas singulares, fixando esse ponto como a média entre os limites mínimo e máximo. Assim, no caso de ausência de circunstâncias que agravem ou atenuem a conduta do agente ou, havendo-as, os respetivos agravativo e atenuativo, por serem iguais, se anularem, a pena deveria a pena ser graduada em concreto à volta da média entre os limites mínimo e máximo estabelecidos em abstrato no preceito incriminatório.
Essa corrente jurisprudencial não vingou muito tempo, consolidando-se na jurisprudência e na doutrina, o entendimento de que a fixação das penas singulares deve fazer-se de acordo com os critérios de determinação da pena estabelecidos no CP, onde não há referência a qualquer ponto médio entre os limites mínimo e máximo da pena estabelecida no tipo penal, como ponto de partida para fixação concreta dessa pena.
«VI – Em sentido contrário à corrente jurisprudencial a que se arrima o recorrente, existe uma outra, que seguimos, de que a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou critérios abstratos de fixação da sua medida, não é compatível com os critérios legais.
«VII – Reconhecendo que a amplitude que geralmente assume a moldura penal do concurso de penas ou seja, a distância entre os limites máximo e mínimo dessa moldura, pode provocar, e muitas vezes provoca dificuldades na determinação da pena, potenciando a produção de desigualdades ou pelo menos disparidades evidentes nas decisões de tribunais diferentes, acrescenta esta corrente, que essas dificuldades, embora maiores por vezes, não são diferentes das que os tribunais enfrentam quando se trata de aplicar uma qualquer pena cujos limites sejam também afastados. O que importa é proceder a uma aplicação muito ponderada e exigente, rigorosamente fundamentada, do critério legal da determinação da pena do concurso, com referência às circunstâncias dos crimes em presença, no seu relacionamento com a personalidade do condenado, e considerando os fins das penas.»
Como resulta do decidido estavam em causa duas teses:
-» a do recorrente, segundo o qual «O Tribunal a quo aplicou uma proporção de cerca de 2/5 sobre cada pena parcelar (das menos elevadas), desviando-se assim da “prática jurisprudencial” de aplicar uma proporção não superior a ¼.»
-» a que a resposta do Ministério Público à motivação do recurso expressava ao afirmar que «inexistem critérios matemáticos para a definição da pena aplicável – tão pouco a jurisprudência invocada reflecte tal critério aritmético – impondo-se ao julgador uma ponderação mais profunda e fundamentada de todos os factores em presença, permitindo-lhe fixar a pena dentro de todo o arco da moldura concurso, de acordo com o juízo formulado a final sobre a personalidade do agente».
O cerne da decisão assente na noção segundo a qual «os Juízes que constituem esta Secção do Supremo Tribunal de Justiça, não seguem a corrente de uso de fórmulas matemáticas na determinação da pena conjunta» e «tudo se passa então como se, por pura ficção, o tribunal apreciasse, contemporaneamente com a sentença, todos os crimes praticados pelo arguido, formando um juízo censório único, projetando-o retroativamente».
E assim este acórdão acompanha a linha jurisprudencial já expressa pelo Acórdão do mesmo Tribunal acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de maio de 2019 (proc. n.º 790/10.2JAPRT.S1), quando estatuiu que
«[…] o critério adotado pelo legislador português é mais maleável do que as “propostas matemáticas”, impondo ao julgador uma ponderação mais profunda e fundamentada de todos os fatores em presença, permitindo-lhe, pois, fixar a pena dentro de todo o arco da moldura concurso, de acordo com o juízo formulado a final sobre a personalidade do agente. É uma solução que apela a um juízo simultaneamente mais rigoroso e prudencial, mais adequado a uma solução justa de cada caso concreto, apreciado na sua singularidade.»
Ficam assim de fora as tentativas jurisprudenciais e doutrinais que no aresto se imputam aos conselheiros Carmona da Mota e Lourenço Martins e ao professor Paulo Pinto de Albuquerque.
Do teor do aresto, que faz uma breve síntese da configuração do problema desde o projecto do Código Penal de 1982, cito a menção ao estudo Artur Rodrigues da Costa sobre o cúmulo jurídico na doutrina na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, publicado na revista Julgar [ver aqui o texto integral]