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Clarice Lispector: o poder de punir

Por ser Domingo, trago aqui alguém, que tendo entrada pela estrada dos terrenos jurídicos a abandonou. Talvez haja nisto um pulsar subconsciente de inquietação ante o apelo de outros mundos que não só o das leis, mundos que se nos oferecem e vincam a os sentimentos, no largo espectro do riso à dor, sobretudo àqueles que estão envolvidos no mundo da justiça, tantas vezes contra as próprias leis e não perdem a noção do humano.

Desta vez, eis Clarice Lispector, cuja tese de licenciatura foi uma paráfrase ao título da obra lendária do Marquês de Beccaria. Dedico-lhe um blog, à sua escrita e à de sua irmã, Elisa, ambas ucranianas refugiadas no Brasil. Está aqui.

Em 2014 pediram-me que falasse na Casa Fernando Pessoa sobre um livro “difícil”. Escolhi um livro seu, Perto do Coração Selvagem. Deixo o que foi o início dessa minha alocução

«A propósito de livros difíceis pediram-me que falasse, aqui na Casa Fernando Pessoa, de Clarice Lispector e escolhesse um livro seu, um livro difícil. E escolhi não o denso A Maçã no Escuro, sua primeira obra, nem o enigmático O Ovo e a Galinha, sim Perto do Coração Selvagem, obra que, depois do seu êxito inicial fulgurante, a atirou para o vazio de tanta dificuldade em encontrar editor, passando pela humilhação de sucessivas recusas e adiamentos quanto ao seu livro seguinte.
«Começou a escrevê-lo em 1942, reclusa deliberada numa modesta pensão para encontrar aí, na solidão e austeridade, o ambiente propício à criação, rabiscando-o, já alma doente sem o saber, num caderno de notas, «tacteando no escuro», como diria, terminando-o no tempo de gestação de uma criança «enquanto estudava, trabalhava, noivava».
«Estudava Direito, curso que nunca transformaria em profissão, mas a que levou a escrever um dos mais lúcidos textos, mau grado breve, mas breve é também a obra do marquês De Beccaria, que claramente tomou como referência ao escrever a sua tese sobre o poder de punir.
«E até aí, nessa jovem universitária se sentia já a irrequietude de alma que a marcaria pela vida e a diferenciava. Porque, ao contrário do que seria natural e escolarmente defensivo nesta matéria, não escreveu sobre o “direito” de punir, fórmula que legitima o Estado no exercício da repressão, mas sim sobre – diria – o mero “poder” de punir.
«A primeira frase desse texto notável é, aliás, logo uma denúncia e um programa de Justiça Criminal: «não há direito de punir. Há apenas o poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a guerra, grande crime, não é punida porque se cima dum homem há os homens acima dos homens nada há».
«À data, Clarice trabalhava então no jornal A Noite, como jornalista, profissão que lhe marcaria para sempre a vida, pelo que torna a escrita acto de maleabilidade e geometria variável, e pelo fruto das realidades humanas que proporciona encontrar.
Publicada a primeira obra, em menos de um mês deixa o Rio de Janeiro, acompanhando seu marido, o diplomata Maury Gurgel Valente, colega de curso, não regressando ao Brasil se não vinte anos depois.
«Expatriada, perde o contacto com o húmus que lhe ditou a génese literária. Passou, entretanto, por Lisboa, onde chega a 2 de Agosto de 1944. Encontra-se aqui com Maria Archer, Natércia Freire, João Gaspar Simões. E aborrece-se. «Lisboa deve ser horrível para se viver e trabalhar», escreveria ela numa carta citada pelo seu biógrafo Benjamim Moser [Clarice, 209]. Não é lisonjeiro sabê-lo, mas é a sua verdade sentimental.
«É aqui, neste cosmopolitismo forçado em que a reclusão interior é liberdade, lobo na estepe, que nasce a natureza universal do seu modo de escrever. Ao contrário da Literatura brasileira tradicional, que tem marca do solo, do clima e das gentes em cada linha dos seus livros, a escrita de Clarice poderia ter surgido em qualquer parte do globo onde o Homem se encontrasse com a essência da sua existência e ousasse perguntar-se.
Eis, pois, o livro que escolhi, que mereceria em 1944 o prémio Gonçalo Aranha, por ter sido considerado o melhor romance do ano.» [para ler o resto clicar aqui]
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