Skip to main content
Uncategorized

Colectivos em tribunais de recurso: 4, 3, 2, 1

O tema pelo qual optei * – a formação do colectivo que nos tribunais superiores decide a sorte de recursos – parece ser apenas uma matéria de organização judiciária, mas trata-se afinal do cerne da real substância do reexame em recurso do decidido pelas instâncias.

Não sou eu quem o diz, socorro-me das palavras do Conselheiro-Presidente emérito deste STJ, Henriques Gaspar, quando, em artigo de balanço sobre uma reforma processual penal escreveu:

«A garantia inerente a um recurso assenta em boa parte na constituição do tribunal ad quem nas formações de julgamento: a decisão em colégio constitui e deve constituir uma qualidade intrínseca à formação dos tribunais de recurso. A restrição da colegialidade enfraquece, formal e substancialmente, a condição orgânica e a dimensão instrumental da efectividade do direito.»

É esta a questão, afinal, um tópico de constitucionalidade, um momento, mais um, da eterna luta pelo Direito, contra a hermenêutica positivista, serventuária dos interesses da pragmática.

+

É conhecida a evolução legislativa deste tema e que se prende com a composição do tribunal de recurso funcionando em secção, ou seja o estatuído no artigo 419º do CPP.

Na redacção originária [Decreto-Lei n.º 78/87] do CPP previa-se que:

Artigo 419.º
(Conferência)

1 – Na conferência intervêm o presidente da secção, o relator e dois juízes-adjuntos.
2 – A discussão é dirigida pelo presidente, que desempata quando não puder formar-se maioria.

Redacção dada pelo seguinte diploma:  Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro

Segundo este sistema:

-» na conferência intervinham quatro juízes [nº. 1], ou seja, o presidente da secção, o relator e dois juízes-adjuntos

-» o presidente dirigia a discussão, votava e detinha voto de qualidade, porquanto, como se expressava o Código o presidente «desempata quando não puder formar-se maioria» [n.º 2]

Consagrava-se assim um modelo com uma dupla faceta (i) um colégio alargado de juízes [4] e (ii) um presidente interveniente, porquanto, não só dirigia a discussão, como votava e desempatava.

Este regime manter-se-ia até que a Lei n.º 59/98 [que entrou em vigor a 01.01.1999, oriunda na Proposta de Lei n.º 157/VII-3, aqui] viria a consagrar uma outra solução  pela qual:

Artigo 419.º
Conferência

1 – Na conferência intervêm o presidente da secção, o relator e dois juízes-adjuntos.
2 – A discussão é dirigida pelo presidente, que, porém, só vota, para desempatar, quando não puder formar-se maioria com os votos do relator e dos juízes-adjuntos.

Redacção dada pelo seguinte diploma:  Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto

Isto é, face a este sistema:

-» mantinha-se a intervenção de quatro juízes, um dos quais o presidente da secção, que dirigia a discussão, o relator e dois juízes adjuntos

-» mas consagrava-se um modelo de presidente que «só» intervinha a votar caso não se formasse maioria com os votos do relator e dos juízes adjuntos

Tratou-se, pois, de manter a ampla colegialidade, mas em que o vocábulo «só vota» dispensava o presidente de entrar no conhecimento da substância do caso em discussão, porquanto, como decorre da fórmula legal, a sua intervenção a votar era excepcional e apenas ocorria quando fosse necessário convocar-se o seu envolvimento para se obter a almejada maioria.

É sabido que tal vocábulo «só» – título de um poema do poeta decadentista António Nobre, escrito durante a sua estadia em Paris, depois de duas reprovações em Direito na Universidade de Coimbra, resultou de uma proposta do Conselho Superior da Magistratura à Proposta de Lei 157/VII que o Governo submetera à Assembleia da República, fruto do trabalho de uma comissão incumbida pelo ministro da Justiça de redigir um projecto de alteração significativa ao Código de Processo Penal.

Seria a Lei 48/2007 [que entrou em vigor a 15.09.2007, saída de um processo legislativo complexo em que emergiu, como iniciativa preponderante a Proposta de Lei nº 109/X-2], que introduziria uma severa restrição ao sistema, alterando significativamente a composição do tribunal de recurso, porquanto:

Artigo 419.º
Conferência

1 – Na conferência intervêm o presidente da secção, o relator e um juiz-adjunto.
2 – A discussão é dirigida pelo presidente, que, porém, só vota, para desempatar, quando não puder formar-se maioria com os votos do relator e do juiz-adjunto.

Redacção dada pelo seguinte diploma:  Rectificação n.º 105/2007, de 09 de Novembro

Ou seja:

-» reduziu-se agora o número de juízes intervenientes de quatro para três, o presidente da secção, o relator e um juiz adjunto, o que se propagava aos casos em que o caso era julgado em recurso, mas mediante audiência [isto por força do artigo 429º do CPP]

-» manteve-se como competência do presidente a direcção da discussão, bem como, com o apoio no vocábulo “só”, o carácter facultativo do voto do presidente, com uma diferença: é que agora, com um colégio de 3 juízes, tratava-se de o presidente decidir uma divergência entre o relator e o juiz-adjunto, porquanto, a estarem em concerto, firmava-se decisão com os seus dois votos, o que ficou claro ante o estatuído pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Junho de 2010:

O tema colocado ao STJ era na aparência formal, o número de assinaturas que se evidenciavam no aresto da Relação sob recurso, duas apenas, como decorre deste excerto:

«IX – Segundo o art. 419º, n.º 1, do CPP, na conferência intervém o presidente da secção, o relator e um juiz-adjunto; e o nº 2 esclarece que a discussão é dirigida pelo presidente, que, porém, só vota, para desempatar, quando não puder formar-se maioria com os votos do relator e do juiz-adjunto.

«X – No caso sujeito, em que o acórdão recorrido se encontra assinado por dois Juízes Desembargadores, não se verifica qualquer falta do número de juízes. Interveio quem tinha que intervir e assinou quem devia assinar, náo o fazendo o Presidente por desnecessário».

Sucede, porém, que, entrando na substância do problema subjacente, o Supremo tornou claro que essa ausência de assinatura decorria de uma circunstância substancial, a da não intervenção do presidente e foi isso que assim consignou:

«XI – Havendo maioria, formada com os votos do relator e do adjunto, o que conduza à dispensa de voto do presidente, que só vota para desempatar, não há necessidade de intervenção do presidente na decisão, havendo dispensa de assinatura, assim se cumprindo o nº 3 do art. 374.º do CPP é assinando os membros do tribunal, que no caso formaram maioria.»

E desta forma, regressando ao tema das assinaturas, tornou-se claro ante esta orientação que:

«XII – A assinatura do presidente nestes casos constará apenas da acta, a certificar a regularidade da tramitação e do julgamento em conferência a que presidiu, não se verificando, pois, qualquer nulidade.»

Um tal modelo encontrou, como dano acessório, uma dificuldade, a da não actualização, em conformidade, do artigo 440º, n.º 4 do CPP, relativo aos recursos de fixação de jurisprudência, o qual teve de ser sujeito a uma interpretação correctiva pelo Acórdão de 12 de Janeiro de 2017, segundo o qual:

«I – Face a uma imperfeita alteração legislativa operada pela Lei 48/2007, há uma discrepância notória entre o art. 440.º, n.º 4, do CPP, que prevê que o processo vá com vistos ao presidente e aos adjuntos -que seriam os dois adjuntos que intervinham na conferência na versão anterior à aludida lei – e os arts. 441.º, n.º 3 e 419.º, n.º 1, ambos do CPP, dos quais decorre que a conferência é composta pelo presidente, o relator e um adjunto e isto por não ter sido revisto o art. 440.º, n.º 4, em conformidade com a modificação verificada no art. 419.º, n.º 1.

«II – Deve fazer-se uma interpretação correctiva do art. 440.º, n.º 4, em função da referida modificação verificada no art. 419.º, n.º 1, no sentido de que, efectuado o exame preliminar pelo relator, o processo é remetido com o projecto de acórdão a vistos do presidente e de um juiz adjunto.»

Esta opção viria a sofrer um esboço de viragem com a Lei n.º 94/2021 [que entrou em vigor a 21.03.2022] dita de combate à corrupção, pela qual – sem que perceba o nexo disso com o proclamado propósito de combate – se determinou que:

-» se mantinha o sistema dos três juízes, um dos quais o presidente da secção, outro o relator e mais um juiz adjunto

-» mas se revogou o n.º 2 do artigo 418º e assim, onde estava que «a discussão é dirigida pelo presidente, o qual, porém, só vota para desempatar, quando não puder formar-se maioria com os votos do relator e do juiz adjunto» ficou o vazio quanto à norma específica que disciplinava quem dirigia a discussão e como se dilucidava um empate.

Ou seja, tendo o legislador querido traduzir a noção de que pretendia agora consagrar uma “colegialidade necessária” pela qual, «quando julgado em conferência, o recurso seja também, como em audiência, julgado por três magistrados judicias», deixou em aberto, por omissão, o que é trave mestra do sistema, a efectiva intervenção do terceiro elemento, aquele a quem cabe dirigir a discussão, o presidente.

+

É esta a situação ainda vigente o que tem aberto a várias interpretações e distintos critérios de actuação ao que me é dado saber.

Esta alteração decorreu de uma iniciativa legislativa apresentada pelo grupo parlamentar do PSD [o Projecto de Lei n.º 876/XIV-2, ver aqui] que curiosamente não mereceu, na altura, qualquer reparo do Conselho Superior da Magistratura quanto a esta alteração, pois sobre isso é omisso longo parecer que esta entidade emitiu e comunicou ao Parlamento a 05.08.2021.

Convertida em lei, surgiram então críticas ao sistema no quadro de um coro de reparos quanto a inúmeras outras previsões da mesma lei, nomeadamente o hoje popularizado artigo 40º do CPP.

Ante isso, a nova titular da pasta da Justiça, submeteu ao Parlamento a Proposta de lei a 3/VX-1 a qual propõe «a repristinação dos nºs 1 e 2 do artigo 419º do CPP na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, passando a fazer parte da conferência dois juízos adjuntos», ficando assim o sistema:

-» na conferência intervêm o presidente da secção, o relator e dois juízes adjuntos

-» mantendo embora o poder de direcção da discussão, o presidente «só vota, para desempatar, quando não puder formar-se maioria com os votos do relator e dos juízes-adjuntos».

Ou seja, o que se propõe é um equilíbrio (i) a favor, por um lado, da colegialidade ampla [4 juízes] que fora quebrada em 2007, mas (ii) a recuperação da intervenção excepcional do juiz-presidente confiando-se-lhe a intervenção dispensável quanto à formação do sentido do decidido.

Trata-se, afinal, de ter levado a lei uma proposta do Conselho Superior da Magistratura, aprovada no seu plenário, como consta da acta respectiva.

Ante isto, eis o que está em discussão em termos de política legislativa como sendo a melhor opção:

-» um sistema que releve qual, afinal, o papel do presidente da secção, na discussão do tema recorrido

-» um regime que tenha praticabilidade funcional

-» um modelo do qual resulte o melhor efeito para a uniformidade e qualidade da jurisprudência e sobretudo para um aprofundado conhecimento do tema sujeito a recurso, fruto da concentração de três perspectivas, numa lógica colegial, através da dialética de uma discussão que se considere digna desse nome.

É conhecida a tese a favor da retração do presidente da secção, sendo disso lídima expressão as palavras do Conselheiro Simas Santos quando, ante a proposta de lei que viria a dar origem à reforma de 2007, já afirmara:

«[…] esta intervenção sistemática do presidente merece-nos bastantes reservas, podendo mesmo mostrar-se de praticabilidade duvidosa.

«Na verdade, o presidente que só dirigia a discussão e votava para desempatar em audiência no STJ, passa a votar sempre nas audiências e a desempatar nas conferências, nas Relações e no Supremo, o que pode significar que em cada sessão semanal, poderá ter que intervir em mais de duas dezenas de acórdãos. É excessivo, eventualmente incomportável, mesmo sem pensar que já tem novas funções atribuídas por esta Revisão: decidir conflitos.»

Mas, segundo o argumento do mesmo autor, um tal sistema, afinal o de apagamento da liderança, numa lógica niveladora, pode pôr em causa a qualidade da própria jurisprudência, porquanto o mesmo:

«[…] pode conduzir a um afrouxamento do sentido da própria jurisprudência, que, pela composição e sucessivas formações dos colectivos dos tribunais superiores, postulava uma intervenção equilibrada de todos os juízes, sem supremacia de nenhum deles.»

Ao contrário, valorizando um modelo pelo qual o presidente tenha um papel mais interveniente, o falecido Conselheiro Maia Gonçalves já lhe apontava a vantagem subjacente, ao acentuar esta faceta do mesmo, ele que fez parte da Comissão de que emergiu o Código de Processo Penal de 1987:

«Uma vez que o presidente da secção intervém em todas as conferências dos processos que pela secção correm, isso «certamente contribuirá para uma desejável uniformidade nas deliberações, tanto mais que tem voto de desempate»

Está, creio, equacionada a questão.

Mas, enfim, talvez a observação que mais captou a minha atenção foi a do Desembargador António Latas a propósito da composição do Tribunal da Relação em sede de Mandado Europeu e Detenção,  quando, em conspecto geral, regista que o legislador relativamente a essa discussão plural em conferência não estabeleceu «formas vinculadas de discussão e deliberação», e assim, digo eu, gerou, afinal, por esta omissão, uma zona de indeterminação relativamente ao que sejam os poderes de direcção do presidente da secção, o que resulta claro deste seu discreto inciso a propósito desse poder de direcção:

«o que quer que seja que a lei pretende significar».

Mas, mais, é que se a intervenção do presidente da secção se pauta entre a indeterminação e a desnecessidade para a formação do sentido do decidido havendo consenso entre o relator e o adjunto ou, num modelo de colégio de quatro, havendo maioria que forme no congresso dos outros três que ele não tenha de desempatar, já o mesmo artigo, publicado na revista Julgar, num outro registo, chamou a minha atenção quando alude à circunstância de a discussão entre o relator e o adjunto se puder fazer através dos «modernos meios de comunicação».

É que, se por esses «meios modernos» se significar uma discussão com a presença em linha telemática de todos, e assim um diálogo dirigido pelo presidente, em regime de simultaneidade de presenças, tratar-se-á apenas de garantir, no mundo virtual, um sucedâneo do mundo real; mas, se tal pretender que haja, como discussão, uma troca de mensagens sucessivas e diferidas entre dois, o relator e o seu adjunto, já estaremos a regressar ao velho sistema das tenções [com ç] que o próprio regista , rememorando-o da escrita do professor Alberto dos Reis:

«Entre o julgamento por tenções e o julgamento em conferência há a seguinte diferença: no primeiro cada juiz escreve no processo o seu voto individual, com a declaração especificada dos fundamentos; no segundo o que aparece é a decisão coletiva tomada em conferência.”. – cfr Organização Judicial. Lições ao curso do 4º ano jurídico de 1908 a 1909, Coimbra – 1909, ed. do autor, pp. 210 e 211.»

Ou seja, estaremos então no pior dos mundos possíveis: nem presidente interveniente, nem real discussão entre os dois sobejantes.

Que tal é passível de reflexão sobre o que isto significa em termos de reexame efectivo do tema em recurso, creio não oferecer dúvida e remeto-me às palavras de Henrique Gaspar com que iniciei esta breve alocução.

Mas uma tal ponderação tornou-se-me absolutamente imperativa quando, ante as palavras do Conselheiro Belo Morgado, difundidas numa rede social, me foi oferecido este panorama, trazido à luz do dia precisamente a propósito da lei de cuja mudança ora se trata:

«Para reforçar a colegialidade no julgamento dos recursos, uma recente alteração ao Código de Processo Penal determinou que os Presidentes das secções criminais passassem, nos tribunais superiores, a intervir na decisão (até agora apenas participavam dois juízes).

«Dizem alguns que desta forma o Presidente da secção terá demasiado trabalho, o que nos remete para um problema que há muito se sente nalguns tribunais da Relação.

«O Presidente da secção é eleito pelos juízes que a compõem. Em regra, são eleitos para o cargo juízes de “mão cheia”, mas por vezes nem tanto. Já tem acontecido serem eleitos juízes com o serviço bem atrasado, precisamente para os libertar do encargo de relatar acórdãos; e noutros casos é eleito o mais antigo e já demasiado cansado.»

Francamente, permitam, gostaria de não ter sabido que isto é assim.

Enfim, valha, para nos animar, a segunda parte do constatado pelo próprio:

«Trabalhei com grandes Presidentes de Secção, que sempre dirigiram ativamente os trabalhos e denotavam pleno conhecimento de todos os processos. Não creio que tivessem a menor dificuldade em intervir no respetivo julgamento, nos termos agora consignados na lei.

«Independente da maior ou menor vocação e preparação para exercer esta função, admito que nalguns casos as secções tenham demasiados juízes e que, por isso, o acréscimo de serviço decorrente do novo regime possa considerar-se objetivamente excessivo para o Presidente.

«Nestas situações a solução passará, por exemplo, por proceder ao desdobramento das secções.»

«Há, naturalmente, uma alternativa possível e razoável ao novo regime: os presidentes das secções criminais passariam a relatar acórdãos (à semelhança do que acontece nas secções cíveis e sociais), sendo o coletivo constituído pelo relator e dois adjuntos.

+

Há, porém, mais, e assim encerro: é que já houve um caso em que um controverso acórdão subscrito por quem, para se distanciar de epítetos e qualificativos do mesmo, entendeu razoável proclamar que o firmara sem ler.

A ser assim, teremos então involuído de um colectivo de quatro para um colectivo de três, de um colectivo de três para um colectivo de dois e de um colectivo de dois para um juiz singular.

Se isto corresponde às exigências de um Estado de Direito, a consciência de quem tenha responsabilidades o dirá.

* texto de uma intervenção destinada a um evento jurídico
Follow by Email
Facebook
Twitter
Whatsapp
LinkedIn