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TC e PGR: duras palavras em pesada derrota

O que surpreende no acórdão breve do Acórdão do Tribunal Constitucional 382/2022 não é só o indeferimento da reclamação apresentada pela Procuradora-Geral da República quanto ao decidido por aquele Tribunal em matéria da desconformidade da lei dita dos metadados com a Constituição: é a dureza da linguagem. Epítetos como «manifestamente inatendível», «manifestamente improcedente», «Mais grave ainda, no que à inatendibilidade da pretensão deduzida diz respeito», são um tom que não pode deixar de ser relevado, significando uma lógica de rude antagonismo argumentativo, relevando – e não pode deixar de se relevar – quem é a entidade subscritora do requerido.

Tirado ontem mesmo e simbolicamente por unanimidade, o acórdão [cujo texto integral está aqui] tem as seguintes linhas de raciocínio todas convergentes para levarem à rejeição das nulidades que a Procuradora-Geral suscitara ante o Acórdão 268/2022 [ver aqui]. Relata-o o relator do acórdão reclamado, Afonso Patrão.

Primeira, é a questão prévia, embora – in cauda veneno – surja na narrativa em último lugar – a falta de legitimidade da Procuradora-Geral para ter suscitado a questão que colocou ao Tribunal, não valendo a invocação genérica de que cabe ao Ministério a defesa da legalidade, porquanto, segundo os juízes do Palácio de Raton. «a defesa da legalidade não pode prevalecer contra a Constituição (cfr. artigos 3.º, 204.º e n.º 1 do artigo 277.º). Razão pela qual se atribui ao Tribunal Constitucional a responsabilidade por apreciar — e sendo o caso declarar — a inconstitucionalidade das normas (mas já não a sua conformidade constitucional), a pedido dos órgãos e entidades a quem a Constituição atribuiu legitimidade (artigos 223.º, n.º 1, 277.º e 281.º da Constituição). A intervenção destes, no domínio da fiscalização abstrata sucessiva, esgota-se nesse quadro, garantindo a natureza jurisdicional desta via de defesa da Constituição.»

Daí que, em conformidade se decida no aresto: «Não compete à Procuradora-Geral da República invocar a «promoção da defesa dos valores constitucionais do Estado de direito democrático» para sustentar que um acórdão do Tribunal Constitucional «pode vulnerar tais interesses constitucionalmente protegidos». Em matéria de defesa da Constituição através do processo de fiscalização abstrata sucessiva, a Constituição não reconhece nem ao Ministério Público, nem a qualquer outro órgão uma função ou interesse extraprocessual de “defesa dos valores constitucionais do estado de direito democrático e da boa administração”. Daí a ilegitimidade constitucional da dedução de um incidente pós-decisório por parte de uma entidade – seja a Procuradora-Geral da República, seja qualquer outro dos órgãos ou entidades elencados no n.º 2 do artigo 281.º da Constituição – que, embora legitimada a desencadear a fiscalização abstrata sucessiva, não seja sujeito no concreto processo em que o incidente é deduzido. Sem que a circunstância de o Tribunal Constitucional notificar todas as suas decisões aos magistrados do Ministério Público que nele exercem funções tenha a virtualidade de modificar a sua posição jusconstitucional, não sendo aqui aplicável a parte final da alínea q) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto do Ministério Público.»

Segundo, e é afinal argumento complementar do referido, considera o Tribunal Constitucional que, se bem que a Lei do Tribunal Constitucional [vê-la aqui] «não contém qualquer norma que regule a dedução de incidentes pós-decisórios relativos a acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização abstrata da constitucionalidade», já que o artigo 69º da mesma se refere expressa e exclusivamente aos processos de fiscalização concreta», há que considerar que «reiterando-se a jurisprudência dos Acórdãos n.ºs 58/95 e 468/2014, o processo «está sujeito aos princípios gerais do processo aplicáveis a decisões insuscetíveis de recurso», razão pela qual é permitido aos sujeitos processuais suscitar incidentes pós-decisórios que daqueles decorram — como é o caso, justamente, da arguição de nulidade.»

Só que, neste contexto, «o processo de fiscalização abstrata sucessiva tem como sujeitos processuais o requerente (que, para além de apresentar o pedido de declaração de inconstitucionalidade, pode ser chamado a intervir nos termos do disposto do n.º 3 do artigo 62.º da LTC) e o órgão autor da norma fiscalizada (que exerce contraditório, nos termos do artigo 54.º da LTC).». E assim: «É a estes – e somente a estes, enquanto sujeitos processuais de um dado processo de fiscalização abstrata – que se reconhece legitimidade (processual) para suscitar incidentes pós-decisórios, como se decidiu nos Acórdãos n.ºs 429/91, 58/95, 1145/96, 128/2003 e 468/2014 (cfr. CARDOSO DA COSTA, “Fiscalização abstracta da constitucionalidade e aclaração de decisões judiciais”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 144, n.º 3988, pp. 61 e 62), razão pela qual carece a Procuradora-Geral da República de legitimidade para a sua dedução.»

Pergunto-me se, com esta referência – à legitimidade possível do órgão do Estado autor da norma – não vai um reparo directo ao Parlamento que poderia suscitar o que não suscitou o tema, mas, como consta do acórdão do TC que foi posto em reclamação pela PGR: «Notificado nos termos conjugados do artigo 54.º e do n.º 3 do artigo 55.º da Lei n º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional [LTC]), o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos.» [ver aqui, no ponto 3 do relatório].

Enfim, a substância do tema numa das suas vertentes, a impossibilidade de modificação do acórdão, à conta da invocada razão da omissão de pronúncia quanto aos efeitos da inconstitucionalidade, que a PGR pretendia não fossem declarados em lógica retroactiva desde a aprovação da lei, mas o TC usasse da prerrogativa prevista no artigo 282º, n.º 4 da CRP. Quanto a tal, o Tribunal considera a impossibilidade de retroagir-se visto estar o tema decidido num sentido em que o Direito nacional tem de decair ante o primado do Direito Comunitário e é aqui uma das partes mais interessantes – porque geradora de uma linha jurisprudencial que vai ter amplos efeitos futuros. Eis o excerto do decidido: «[…] as normas que determinam uma obrigação indiferenciada de conservação de metadados não podiam já ser aplicadas por qualquer autoridade nacional desde 2014, momento em que se concluiu pela sua incompatibilidade com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia de 8 de abril de 2014, Digital Rights Ireland, proc. C-293/12 e C-594/12; e de 21 de dezembro de 2016, Tele2 Sverige e Watson, proc. C-203/15 e C-698/15) e surgiu a obrigação, para todas as autoridades nacionais (incluindo judiciárias) de recusar a sua aplicação, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição e tal como foi decidido pela Comissão Nacional de Proteção de Dados na Deliberação n.º 1008/2017, de 18 de julho de 2017.»[veja-se a Carta aqui].

 

 

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