O cerne do artigo 40º do Código de Processo entendo-o assim: que intervenção processual prévia implica um envolvimento tal de um juiz que o mesmo possa ver comprometida a sua distância face ao caso que lhe seja submetido para decisão, afinal a sua isenção ou possa, ao limite, vê-la questionada em virtude de um juízo prévio que tenha formado.
O tema teve uma história quando se questionou em que medida o juiz que tivesse decretado a prisão preventiva poderia julgar o caso do arguido que por acto seu ficara privado da liberdade.
A lógica subjacente ao problema é que, ao decretar uma tal medida coactiva, ao ter de valorar os fortes indícios, o juiz formaria uma convicção sobre a possível responsabilidade daquela pessoa, o que poderia contaminar a apreciação que tivesse de fazer quando a mesma lhe fosse submetido agora em sede de julgamento.
Praticamente ao mesmo tempo, quer o Tribunal Constitucional, quer o Supremo Tribunal de Justiça intervieram e decretaram que a Constituição da República não permitira tal sobreposição.
O que é interessante é que, quando se colocou como problema o saber se poderia ser juiz de instrução a mesma pessoa que praticaram os actos jurisdicionais do inquérito, o mesmo Tribunal Constitucional não viu nisso razão de desconformidade com a Lei Fundamental e os tribunais ordinários viabilizaram a possibilidade: no fundo aceitou-se que era exigível que o mesmo juiz julgasse os seus próprios actos e sem recurso, pois, como se sabe, actualmente, das decisões sobre actos instrutórios e da decisão instrutória final que seja conforme à acusação do Ministério Público não há recurso.
Ou seja, não só se viabilizou um sistema em que as garantias de defesa poderiam estar em causa, como a própria isenção, que é parte integrante da independência judicial, ficou posta à prova: por lei impunha-se ao juiz julgar o que tinha julgado.
Foi neste ambiente, de dois pesos e duas medidas, que surgiu a redacção ainda vigente do artigo 40º do CPP; emergente da Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro e que conhecerá agora revisão, como noticiei aqui e a que adiante voltarei.
Um pouco de História – num tempo em que se disseminou o desprezo por essa forma de entender o presente pela rememoração do seu passado – ajudará a compreende o que se passou.
Na sua formulação inicial, emergente do Decreto-Lei n.º 78/87 – que aprovou o Código de Processo que substitui o de 1929 e cuja estrutura essencial, muito alterada, ainda nos rege – o referido normativo tinha esta redacção:
«Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado, ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido.»
Por força da Lei 59/98, de 25 de Agosto, o elenco dos actos não permitidos foi significativamente alargado, fazendo-se assim eco daquela jurisprudência que referi [vai em itálico o inovador]:
«Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado, ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido.»
Logo no ano seguinte, por força da Lei 3/99 de 13 de Janeiro, o mesmo normativo sofreria uma nova modificação, que lhe deu esta redacção [vai igualmente em itálico o inovador]::
«Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido.
Oito anos volvidos, a Lei 48/2007, de 29 de Agosto, reconstruiria o artigo aumentando o elenco de casos de que resultaria a inutilização de um juiz
Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:
a) Aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º;
b) Presidido a debate instrutório;
c) Participado em julgamento anterior;
d) Proferido ou participado em decisão de recurso ou pedido de revisão anteriores;
e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.
Em resultado da Lei 29/2013, de 21 de Fevereiro, novo aumento de casos de impedimento judicial:
Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:
a) Aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º;
b) Presidido a debate instrutório;
c) Participado em julgamento anterior;
d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.
e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.
Ora foi sobre esta formulação que viria a incidir a controversa alteração emergente da referida Lei 94/2021 a qual incidiria sobre estas alíneas a números, tornando artigo nisto:
1 – Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:
a) Praticado, ordenado ou autorizado ato previsto no n.º 1 do artigo 268.º ou no n.º 1 do artigo 269.º;
b) Dirigido a instrução;
c) Participado em julgamento anterior;
d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.
e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.
2 – Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos previstos nas alíneas a) ou e) do número anterior.
3 – Nenhum juiz pode intervir em processo que tenha tido origem em certidão por si mandada extrair noutro processo pelos crimes previstos nos artigos 359.º ou 360.º do Código Penal.
Ante o coro de críticas que não se fizeram surgir, o Governo pretende agora repristinar o que foi a fórmula que apresentou à Assembleia da República [a citada proposta de lei 3/XV-1] para que o preceito fique assim redigido:
«Artigo 40.º
1. […]
a) Aplicado medida de coação prevista nos artigos 200.º a 202.º;
b) Presidido a debate instrutório;
[…].»Ou seja, a vingar o que o Governo propõe pode [intervir em recurso ainda que de revisão] julgar o juiz que, intervindo na instrução de um processo, tenha praticado os actos instrutórios respectivos, desde que não tenha presidido ao debate instrutório, presumindo eu que significando isso que não tenha sido de sua autoria a decisão instrutória.
E pode julgar também [ou intervir em recurso ainda que se revisão] o juiz que no inquérito tenha praticado os actos jurisdicionais do inquérito, ou seja, relativamente ao n.º 1 do artigo 268º:
-» proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público e dos artigos 200º a 202º;
-» proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos do n.º 3 do artigo 177.º, do n.º 1 do artigo 180.º e do artigo 181.º;
-» tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do n.º 3 do artigo 179.º;
-» declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, com expressa menção das disposições legais aplicadas, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º;
-» praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução.
E pode julgar, enfim [e do mesmo modo intervir em recurso ainda que de revisão] também o juiz que tenha autorizado ou ordenado os actos a que se refere o artigo 269º, n.º 1:
-» efetivação de perícias, nos termos do n.º 3 do artigo 154.º;
-» efectivação de exames, nos termos do n.º 2 do artigo 172.º;
-» buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do artigo 177.º;
-» apreensões de correspondência, nos termos do n.º 1 do artigo 179.º;
-» intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.º e 189.º;
-» a prática de quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.
Como se nota, cada um destes actos processuais tem um significado distinto e implica, relativamente a quem os praticar, um envolvimento diverso no que se refere à formação de uma convicção sobre a indiciação, justificando-se ou não a inutilização de um juiz.
Tenho sobre isso uma opinião. Para já ficam a ideias arrumadas sobre o aquilo sobre o que haverá que a formular.