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25 de Abril: as leis de desmantelamento

Projectei em 2016 a publicação. Seria uma compilação da legislação revolucionária, a fracturante primeiro, a de implantação depois. Começaria, em primeiro volume, pela emergente do 25 de Abril, seguiria, em segundo tomo, pela da Revolução de 28 de Maio de 1926 e respectiva constitucionalização pelo Estado Novo, a saída da Revolução do 5 de Outubro de 1910 e, enfim, a que foi produto da Revolução de 1820 e sua constitucionalização em 1822.

Editá-la-ia, a expensas próprias, através de uma editora que então mantinha, a Labirinto de Letras. Vicissitudes da vida adiaram o projecto, mas não o inutilizaram e suponho que um diria o verei publicado.

Trouxe-o aqui hoje, por ser o dia 25 de Abril, e assim arquivo o que seria a introdução ao capítulo das leis de desmantelamento do aparelho de Estado, a que seguiria a e de saneamento nos quadros da administração pública e as relativas ao desmantelamento do sistema colonial. 

«O regime político que fora proporcionado pela Revolução Nacional de 28 de Maio de 1926, capitaneada por Gomes da Costa, então General, a qual enformara uma “Ditadura Nacional”, e constitucionalizado, com António de Oliveira Salazar, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, sob a fórmula de “Estado Novo”, através da Constituição de 1933, como Estado Corporativo e se liberalizara, numa lógica de «evolução na continuidade», com outro Professor de Direito, desta feita da Faculdade de Direito de Lisboa, Marcelo Caetano, caiu na rua, a 25 de Abril de 1974, com o golpe militar oriundo do Movimento das Forças Armadas, sem resistência digna de registo.

A esse pronunciamento castrense, oriundo do «movimento dos capitães», sucederam dois actos fundamentais para a legitimação da nova situação: primeiro, uma simbólica “passagem de poderes”, no Quartel da Guarda Nacional Republicana ao Carmo, em Lisboa, outorgada pelo Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, ali sitiado, ao General António de Spínola, vista a ausência do Presidente da República, o Almirante Américo Tomás, então sob detenção; segundo, uma grandiosa manifestação popular, a comemorar, uns dias depois, o 1º de Maio, a qual referendaria, por aclamação, a nova ordem política que o Movimento das Forças Armadas havia imposto com o que ficou conhecido como a Revolução dos Cravos.

Mobilizado inicialmente por descontentamento profissional decorrente da guerra no Ultramar, o «movimento dos capitães» ampliou-se a acto revolucionário já com programa político próprio, destinado a ser alternativa ao regime vigente, o Programa do Movimento das Forças Armadas.

Se bem que, vitoriosa a Revolução, o referido Programa mau grado ter sido logo citado como fundamento no preâmbulo da Lei n.º 1/74, de 25 de Abril, só haja sido consagrado como Lei Fundamental com a Lei n.º 3/74, de 14 de Maio, este coexistiu até 1976 com a vigência «transitoriamente em vigor» da Constituição de 1933, a qual deveria ser interpretada e aplicada de acordo com os princípios consagradas naquele Programa, cujo texto «autêntico» se publicava em seu anexo.

Seguindo o previsto no Programa do MFA o poder foi assumido, de facto, por uma Junta de Salvação Nacional integralmente formada por militares dos três ramos das Forças Armadas, os quais foram, através do Decreto-Lei n.º 177/74, de 29 de Abril, firmado pelo Presidente da própria Junta, António de Spínola, «promovidos por distinção aos postos de vice-almirante e general de quatro estrelas».

No plano da legalidade, com data de 25 de Abril, e citando como sua fonte de legitimação o referido Programa do MFA, a Junta de Salvação Nacional, fez publicar uma Lei, com o n.º 1/74, pela qual, com a assinatura do seu Presidente, o General António de Spínola, destitui o Presidente da República, exonera o Presidente do Conselho de Ministros e todos os Ministros, Secretários de Estado e Subsecretários de Estado do seu Governo e dissolve a Assembleia Nacional bem como o Conselho de Estado, estipulando que na referida Junta se concentram todos os poderes até ali atribuídos àqueles órgãos.

Mais tarde, pelo Decreto-Lei n.º 192/74, de 7 de Maio foi determinado que os delegados da Junta de Salvação Nacional praticassem actos próprios de ministros

Era o desmantelamento dos órgãos estruturantes do regime deposto: não se eliminavam os órgãos constitucionais do Estado, mas os seus poderes eram atribuídos a um outro, saído da Revolução.

No mesmo dia a folha oficial publicava uma série de diplomas legislativos pelos quais se prosseguia a exoneração dos que até ali tinham servido o regime anterior.

Primeiro, o Decreto-Lei n.º 169/74, exonerando os Governadores-Gerais do que denominava curiosamente não “colónias” nem “províncias ultramarinas”, nomenclatura sucessivamente adoptada pelo regime deposto e a primeira da Oposição, mas sim dos “Estados de Angola e Moçambique”, conferindo poderes respectivos aos Secretários-Gerais. De fora da lei ficavam todos os demais territórios no Ultramar.

Na mesma lógica, o Decreto-Lei n.º 170/74, exonerava os governadores civis, quer do Continentes quer das “ilhas adjacentes”, como então se denominavam os Açores e a Madeira, passando as funções respectivas a ser exercidas pelos seus Secretários.

Pelo Decreto-Lei n.º 171/74 foram, por seu turno, extintos os seguintes organismos emblemáticos do regime: a Direcção-Geral de Segurança, a Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa e a Mocidade Portuguesa Feminina, o Secretariado para a Juventude.

A Direcção-Geral de Segurança sucedera em 1969 à PIDE, polícia encarregada essencialmente da investigação dos crimes políticos contra a segurança interna e externa do Estado e da recolha de informações de recorte político, além de funções no campo da polícia de fronteiras. Fora criada com o termo da segunda guerra mundial, dando continuidade à então existente PVDE, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado.

O Decreto-Lei saído da Revolução abria, porém, uma excepção: salvaguardava a subsistência dessa polícia, extinta na Metrópole, para o Ultramar, prevendo que aqui apenas ocorreria o seu saneamento e reorganização tendente à transformação em Polícia de informação Militar. É que a referida entidade cooperava com os militares no teatro de guerra ultramarina e não estava previsto no Programa do MFA o imediato termo daquela guerra, pelo que a DGS subsistiria, transformada embora em PIM «enquanto as operações militares o exigirem».

Quanto à Legião Portuguesa, viu as suas bases serem aprovadas pelo Decreto n.º 27 058, de 30 de Setembro de 1936 reconhece e enquadra em total obediência ao Governo, como uma «formação patriótica de voluntários destinada a organizar a resistência moral da Nação e cooperar na sua defesa contra os inimigos da Pátria e da ordem social», integrando-se no «conceito de Nação Armada», actuando «sempre em obediência ao Governo»

Já a Mocidade Portugal e a Mocidade Portuguesa Feminina, haviam sido criadas respectivamente em 1936 e 1937 como únicas entidades agregadoras das actividades de juventude dentro dos parâmetros ideológicos do regime.

A Mocidade Portuguesa teve vida com o artigo 40º Decreto-Lei n.º 26 611, de 19 de Maio de 1936, que criou a Junta Nacional de Educação, na sequência do previsto na Base XI da Lei de Bases n.º 1941, de 19 de Abril de 1936, a qual, gerando a transformação do republicano Ministério da Instrução Pública em Ministério da Educação Nacional, previa que seria dada «à mocidade portuguesa uma organização nacional e pré-militar que estimule o desenvolvimento integral da sua capacidade física, a formação do carácter e a devoção à Pátria, e a coloque em condições de poder concorrer eficazmente para a sua defesa».

De acordo com o referido Decreto-Lei, a Mocidade Portuguesa almejava em relação à juventude o «desenvolvimento integral da sua capacidade física, a formação do carácter e a devoção à Pátria», tal como previsto na Lei de Bases, mas acrescentando-se que tal teria lugar «no sentido da ordem, no gosto da disciplina, e no culto do dever militar».

A Mocidade Portuguesa Feminina seria criada no ano de 1937, através do Decreto n.º 28 262, de 8 de Dezembro, firmado também pelo ministro da Educação Nacional, António Carneiro Pacheco, sendo concebida como entidade a cargo da Obra das Mães pela Educação Nacional, associação de utilidade pública criada sob o patrocínio do Ministério da Educação Nacional pelo Decreto n.º 26893 de 15 de Agosto de 1936, visando «a formação do carácter, o desenvolvimento da capacidade física, a cultura do espírito e a devoção ao serviço social, no amor de Deus, da Pátria e da Família.»

E finalmente o Secretariado para a Juventude, fora criado, através do Decreto-Lei n.º 446/71, de 25 de Outubro, sob a iniciativa do ministro da Educação Veiga Simão e na dependência do seu Ministério, como instrumento de sobreposição de funções que eram até então assumidas pela Mocidade Portuguesa e pela Mocidade Portuguesa Feminina, visando a «integração esclarecida dos jovens na vida cole, preparando-os para uma efectiva participação na obra de desenvolvimento nacional».

Almejando-se o intervencionismo na vida da juventude, decretou-se que a formação de organizações que visassem actividades juvenis, exceptuando-se as de carácter religioso, ficavam dependentes de autorização do ministro e as próprias excursões e visitas de estudos de estudantes que não fossem organizadas por aquele Secretariado dependiam de autorização do ministro, ou do reitor ou director do estabelecimento de ensino em questão.

Na sequência legislativa, a folha oficial do mesmo dia publicava o Decreto-Lei n.º 172/74 o qual decretava a extinção da Acção Nacional Popular, fazendo reverter a favor do Estado os seus bens.

A Acção Nacional Popular era, numa fórmula resumida, uma associação cívica que sucedera à União Nacional, na realidade o “partido único” do Estado Novo que nela se transformara no seu V Congresso, ocorrido no Estoril, em Fevereiro de 1970.

A União Nacional, que vira os seus estatutos aprovados em 1932, pelo Decreto nº 21:608, de 20 de Agosto, tendo no mesmo ano sido modificados pelo Decreto nº 21:859, de 12 de Novembro, assumia-se como uma «associação sem carácter de partido e independente do Estado, destinada a assegurar, na ordem cívica, pela colaboração dos seus filiados, sem distinção de escola política ou de confissão religiosa, a realização e a defesa dos princípios consignados nestes Estatutos, com pleno acatamento das instituições vigentes».

Gizada por Marcelo Caetano, a ANP apresentava por seu turno face à União Nacional, algumas subtis diferenças. Nominalmente era mera «associação cívica destinada a promover a participação dos cidadãos no estudo dos problemas da Nação Portuguesa e a prática das soluções mais condizentes com os princípios fundamentais que professa». A nomenclatura “partido” desaparecera como que a inculcar a ideia de que a lógica da unicidade partidária desaparecera. Mas tanto uma como outra impediam de facto a existência de partidos políticos.

Estava, com este primeiro passo, consumada a desarticulação orgânica do regime antecedente: a Nação poderia organizar-se politicamente de forma a exercer a sua participação política através de organizações de cunho cívico.

No seu ponto 5, b) o Programa do MFA havia previsto que o Governo Provisório que se formasse diligenciaria no sentido de se criarem «associações políticas» que, note-se a cautela da fórmula, pudessem vir a ser «possíveis embriões de futuros partidos políticos».

No dia seguinte, 26 de Abril, o General António de Spínola, leu uma «proclamação ao País» com o seguinte teor:

«Em obediência ao mandato que acaba de lhes ser confiado pelas Forças Armadas, após o triunfo do Movimento em boa hora levado a cabo pela sobrevivência nacional e pelo bem-estar do Povo Português, a Junta de Salvação Nacional, a que presido, constituída por imperativo de assegurar a ordem e de dirigir o País para a definição e consecução de verdadeiros objectivos nacionais, assume perante o mesmo o compromisso de:

–  Garantir a sobrevivência da Nação, como Pátria Soberana no seu todo pluricontinental;

–  Promover, desde já, a consciencialização dos Portugueses, permitindo plena expressão a todas as correntes de opinião, em ordem a acelerar a constituição das associações cívicas que hão-de polarizar tendências e facilitar a livre eleição, por sufrágio directo, de uma Assembleia Nacional Constituinte e a sequente eleição do Presidente da República;

–  Garantir a liberdade de expressão e pensamento;

–  Abster-se de qualquer atitude política que possa condicionar a liberdade da eleição e a tarefa da futura Assembleia Constituinte e evitar por todos os meios que outras forças possam interferir no processo que se deseja eminentemente nacional;

–  Pautar a sua acção pelas normas elementares da moral e da justiça, assegurando a cada cidadão os direitos fundamentais estatuídos em declarações universais e fazer respeitar a paz cívica, limitando o exercício da autoridade à garantia da liberdade dos cidadãos;

–  Respeitar os compromissos internacionais decorrentes dos tratados celebrados;

–  Dinamizar as suas tarefas em ordem em que no mais curto prazo o País venha a governar-se por instituições de sua livre escolha;

–  Devolver o poder às instituições constitucionais logo que o Presidente da República eleito entre no exercício das suas funções.»

Era o compromisso de que uma nova ordem constitucional seria estabelecida e a Revolução se esgotaria com a sua consagração.

A rematar uma aceleração histórica de cunho revolucionário e insurrecional o caminho traçado pelo Programa do Movimento das Forças Armadas haveria de orientar-se, e com força de Lei Fundamental, em sentido bem diverso do previsto em 25 de Abril de 1974: com a Constituição Política de 1976 definir-se-ia que «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes» e consagrava-se que a «República Portuguesa é um Estado democrático, baseado na soberania popular, no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e no pluralismo de expressão e organização política democráticas, que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras».

A estrutura que se criara após o desmantelamento do regime político antecedente desmantelar-se-ia, por seu turno, quer no que se refere aos objectivos estratégicos quer no que respeita à orgânica do Estado e à estruturação da sociedade civil.

Mas não se ficaria por aqui a supressão dos organismos característicos do regime anterior. Pelo Decreto-Lei n.º 199/74, de 14 de Maio seriam extintas as Comissões de Exame e Classificação de Espectáculos, de Recurso e de Literatura e Espectáculos para Menores, exonerando com efeitos a 24 de Abril desse ano os respectivos membros, sucedendo que era dado ao ministro competente o poder para criar comissões “ad hoc” para o mesmo fim.»

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