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Reconhecimentos e identificação

By Abril 21, 2022Abril 23rd, 2022Não existem comentários

O tema do reconhecimento em processo penal – e nomeadamente quando efectivado em audiência [admitido a partir do estatuído na Lei 48/2007, de 29 de Agosto] – é uma matéria controversa; não pelo enunciado do artigo 147º do CPP, o qual prevê modalidades distintas de tal meio de prova, mas sobretudo pela distinção entre o “reconhecimento” em sentido próprio e a “identificação” e , isto para além dos denominados reconhecimentos “atípicos” ou “informais”, ou seja, aqueles que, sem as garantias do primeiro, levam também à individualização de uma pessoa com as consequências daí emergentes, isto sem considerar que quando o identificável estiver sentado no “banco dos réus” a probabilidade de, ao estar ali, ser dele que se trata aumenta exponencialmente.

Eis o preceito em causa:

«1 – Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.
«2 – Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual.
«3 – Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando.
«4 – As pessoas que intervierem no processo de reconhecimento previsto no n.º 2 são, se nisso consentirem, fotografadas, sendo as fotografias juntas ao auto.
«5 – O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2.
«6 – As fotografias, filmes ou gravações que se refiram apenas a pessoas que não tiverem sido reconhecidas podem ser juntas ao auto, mediante o respectivo consentimento.
«7 – O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.»

Relevante é, por isso, o que foi sentenciado pelo Tribunal da Relação do Porto no seu acórdão de 16 de Março de 2022 [proferido no processo n.º 9106/18.9T9PRT.P1, relator Pedro Afonso Lucas, texto integral aqui] quando, tendo presente o teor daquele preceito estatui:

«Distinguem-se aqui três modalidades de reconhecimento: o reconhecimento por descrição, o reconhecimento presencial e o reconhecimento com resguardo.
Sucintamente se dirá que o reconhecimento por descrição, previsto no nº 1, funciona como acto preliminar dos demais, e nele não existe qualquer contacto visual entre os intervenientes, ou seja, entre a pessoa que deve fazer a identificação e a pessoa a identificar.
O reconhecimento presencial, previsto no nº 2 do mesmo artigo, tem lugar quando a identificação realizada através do reconhecimento por descrição não for cabal.
O reconhecimento com resguardo, previsto no nº 3 ainda do art.147º, tem lugar quando existam razões para crer que a pessoa que deve efectuar a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento. Trata-se, pois, de uma forma de protecção da testemunha. Esta modalidade de reconhecimento obedece à sequência descrita para o reconhecimento presencial, mas agora a pessoa que vai efectuar a identificação deve poder ver e ouvir o cidadão a identificar, mas não deve por este ser vista.
O reconhecimento de pessoas que não tenha sido efectuado nos termos que ficaram expostos, não vale como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorreu.
Numa análise deste regime com os pressupostos daquela que vem efectuada pelo recorrente, dir-se-ia que, quer em sede de investigação criminal quer de julgamento (por via da nova redacção do transcrito nº7 deste art. 147º do Cód. de Processo Penal, introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, que veio admitir que o reconhecimento possa ter lugar em audiência de julgamento, mas tendo aí de obedecer ao formalismo estabelecido naquele preceito legal), sempre que esteja em causa a demonstração da identidade de uma pessoa como agente de factos criminalmente relevantes por via da descrição de quem assista a tais factos, deveria proceder-se à diligência de reconhecimento assim regulada, sob pena de tal prova, nessa parte, não poder ser admitida e valorada.
Julga-se, porém, não poder efectuar-se uma tal abordagem ao regime processual em causa que, por apressada, conduza a uma interpretação literal do mesmo, e determine uma catalogação de situações concretas como aquela dos presentes autos nos rigorosos termos do citado art. 147º do Cód. de Processo Penal e assim a consideração de que estaremos perante uma proibição de prova.
Na verdade, e como é também consabido, depois de preconizar o art. 124º/1 do Cód. de Processo Penal que «Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis», adita-se no art. 125º do Cód. de Processo Penal – consagrando-se assim o principio da legalidade da prova –, que são admissíveis as provas que não forem proibidas, o que significa que é admissível o recurso a todos os meios de prova (não proibidos) para a demonstração dos factos que são objecto do processo.
Pois bem, e como acima se enunciou, cumpre realçar que o facto cuja demonstração aqui está em questão – a identidade do agente dos factos criminosos em causa nos autos – não é um facto cuja demonstração probatória esteja vinculada ao concreto meio de prova de reconhecimento nos termos do art. 147º do Cód. de Processo Penal.
O que significa que no caso vigora o acima aludido princípio da liberdade da prova como previsto no art.125º do Cód. de Processo Penal, podendo a demonstração em causa assentar em qualquer meio de prova suficiente, adequado e válido.»

E mais adiante:

«Citando Francisco Marcolino de Jesus, em “Os meios de Obtenção da Prova em Processo Penal” (2ª edição, a pág. 160 – isto é, um pouco mais adiante do excerto citado pelo recorrente), «O reconhecimento directo ou identificação do arguido, feito em audiência, que muitas das vezes se confunde com o reconhecimento enquanto meio de prova tipificado, é um meio de prova atípico, que não está sujeito à disciplina dos normativos citados. Trata-se agora de uma diligência sujeita à imediação em que o ofendido ou a testemunha afirmam que a pessoa responsável pelo crime é aquela para a qual estão a olhar. Constitui meio de prova válido, não sujeito às formalidades previstas no artº 147º”.

Ou seja, como acima se indicou, o facto de não se estar no caso perante uma prova por reconhecimento nos termos do art. 147º do Cód. de Processo Penal não impede que o depoimento de uma testemunha no sentido de identificar um arguido como sendo o agente dos factos possa valer como meio de prova.
Se a testemunha – e considere-se maxime o ofendido – não tiver dúvidas sobre a pessoa que praticou os factos em análise, nomeadamente por ser pessoa sua conhecida por motivos que explane e se revelem coerentes e razoáveis, esse depoimento pode ser avaliado (apreciado livremente) pelo tribunal de acordo com as regras gerais de apreciação da prova testemunhal. A inexistência de reconhecimento nos termos do art. 147º do Cód. de Processo Penal apenas afasta a consideração da autonomia própria desse especial meio de prova – mas não vicia algo que lhe é anterior, como a percepção física que a testemunha captou do visionamento daquela pessoa a praticar os factos, pessoa que a mesma afirma conhecer.

O decidido cita, em apoio do seu entendimento outra jurisprudência que será útil considerar:

 -» Tribunal da Relação de Lisboa de 22/06/2010 (proc. 1796/08.7PHSNT.L1-5): «nem todas as “identificações” realizadas em audiência têm que revestir a forma de reconhecimento nem o artigo 147º do Código de Processo Penal obriga a que todos os depoimentos sejam interrompidos no momento da “identificação” para que passem, naquele extracto de “testemunho”, a revestir a forma de reconhecimento. (…) Naturalmente que essa “identificação” deverá ser apreciada como um mero depoimento ou meras declarações, que não como de um reconhecimento se tratasse»

-» Supremo Tribunal de Justiça de 15/09/2010 (proc. 173/05.6 GBSTC.E1.S1):«não estamos perante um autêntico reconhecimento ou reconhecimento em sentido próprio, mas antes perante um reconhecimento atípico ou informal. Na verdade, estamos perante um “reconhecimento” que consistiu em perguntar à testemunha, em audiência, durante o seu depoimento, se reconhecia aquele arguido – presente na audiência – como sendo o agente ou autor dos factos que lhe eram imputados (na acusação ou na pronúncia). Não se trata de um reconhecimento em sentido próprio, formal, a que alude o art. 147.º do CPP e que devesse obedecer às formalidades ali estabelecidas, mas, antes, de uma mera identificação do arguido (pessoalmente porque todos presentes na audiência) ou vendo a sua fotografia que lhe foi exibida (uma vez que depunha por videoconferência) reconhece aquele como o autor dos factos que lhe são imputados. (…) Sendo assim, esta “identificação” do arguido insere-se no depoimento da testemunha e segue o regime estabelecido no CPP para esse depoimento, podendo, por isso, ser valorado de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no art. 127.º do CPP. A diligência realizada é, pois, legal, sendo em sede de valoração de prova que cabe apreciar o maior ou menor valor probatório da identificação do arguido, feito pela testemunha, pois trata-se de um elemento do respectivo depoimento testemunhal, que teve lugar em audiência de julgamento e ao qual não pode atribuir-se-lhe o especial valor que é inerente ao “reconhecimento próprio” »

-» Tribunal da Relação do Porto de 17/03/2010 (proc. 1001/03.2JAPRT.P1): «A identificação do arguido por testemunha, em audiência, insere-se no âmbito da prova testemunhal e não no âmbito da prova por reconhecimento, pelo que é inaplicável àquela o formalismo processual a que este está subordinado»

– e do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/06/2012 (em Col. Jur., 2012, T.3, pág. 318): «I. Se o autor do crime está identificado, desde o início da investigação, por quem depõe, sendo dele conhecido, não há necessidade de proceder a reconhecimento. II. Nesse caso, a identificação, em audiência, dessa pessoa como autor de determinado facto, não está sujeita ao formalismo do artº147º do CPP, constituindo depoimento atendível, sujeito ao exame crítico e livre convicção do tribunal».

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