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Zoologia jurídica

By Janeiro 1, 2022Abril 18th, 2022Não existem comentários

 

Talvez tenha encontrado o livro certo para estes momentos difíceis da minha profissão.

Rudolph von Jhering [Caspar Rudolph Ritter von Jhering, 1818-1892] já tinha escrito as obras pelas quais ganhou nomeada no mundo jurídico, desde as relativas ao Direito Romano, bem como “A Luta pelo Direito” e “A Finalidade no Direito” quando em 1884 publicou esta bem humorada colectânea a que chamou “Scherz und Ernst in der Jurisprudenz” e que em uma tradução livre se poderia chamar Piada e Seriedade na Jurisprudência ou, como resultou na versão da terceira edição, em castelhano, na qual o estou a ler, um facsimile publicado em 1938 pela Editorial Revista de Derecho Privado, com tradução de Román Piaza, reimpresso pela Maxtor, “Jurisprudencia en Broma y en Serio”.

Para um autor que só pode ser encarado com respeito, o tom irónico e amiúde trocista com que escreve tem de ser, porém, ensinamento, desde logo o tom epistolar que torna método coloquial de pensar juridicamente, em modo conversacional.

O livro compõe-se de várias partes, a abrir um conjunto de seis cartas que escreveu, primeiro sem indicação de autoria e foram publicadas entre 1861 e 1866 na “Deutsche Gerichtszeitung”, origináriamente denominada “Preussiche Gerichtszeitung”, revista para juízes que, mau grado isso, acabariam por ser destinatários de parte das reflexões críticas ali alinhadas.

O mote central das cartas é porém o combate ao construtivismo universitário, aquela forma tipicamente alemã de formular soluções abstractas através de conceitos e movimentar dentro deles o pensamento jurídico desconsiderando a relevância prática da conclusão. Há nisso, até pelo tom, algo de nietzscheano, descontada a exaltação do filósofo de “Assim Falava Zaratrusta”.

O território da narrativa é o domínio romanista, os temas decorrentes dos preceitos do “Corpus Iuris Civilis” e das “Pandectas”, seja, pois, o Direito Civil, áreas que foram a do seu estudo e do seu ensino na Alemanha, Áustria e Suíça.

Compilação de outros escritos com o mesmo tom, o livro contém também as quatro “Charlas de un Romanista”, inicialmente publicadas em 1880 na “Juristische Blätter” e, enfim, o mais jocoso de todos, o texto ficcional “No Céu dos Conceitos Jurídicos”, viagem de um morto ao mundo onde se encontram os eleitos pelo seu trabalho no domínio da teoria pura do Direito, de onde o iniciado pode ser expulso assim lance a pergunta fatal “para que serve?”, passeio por entre os mais esquisitos e absurdos maquinismos, como a prensa dialéctico-hidráulica para interpretações legais.

Passo interessante o da segunda carta, aquele em que, a sério ou a brincar – quem o sabe ante uma obra assim – Jhering refere o excerto do Direito que teria significado, paradoxalmente, ponto de viragem na sua vida, afinal não uma corrente filosófica ou um tratado de hermenêutica jurídica, mas sim o discretíssimo brocardo «nemo pro parte testatus pro parte intestatus decedere potest”, a máxima legal jurídica segundo a qual não o Direito Romano não permitia a coexistência da sucessão testamentária com a sucessão a que hoje chamamos legítima.

Gera perplexidade que um simples preceito, perdido na floresta densa que o “Digesto” romano compilou, tenha tal capacidade de revolucionar o que já o autor já vivera. Compreende-se, porém, ao entender em que medida aquela frase sintetiza toda a filosofia jurídica romana em torno do Direito das Sucessões e afinal, uma concepção filosófica da vida, pela qual «a família e o direito do indivíduo apresentam a posição de forças inimigas, cada uma das quais trata de subjugar a outra, e cuja unificação e pacificação só se alcança pelo abatimento de uma delas».

Enfim, assim abro o ano.

Há, olhando com atenção a sua fotografia um semblante trocista, que a finura dos lábios parece querer conter. E, de facto, ante algum deste mundo jurídico, tal como ele tornou, amiúde opaco, autocentrado, pomposo de forma e inconsequente de resultado, talvez o riso seja tão útil quanto a seriedade.

A propósito de uma figura jurídica, a da “obrigação correal”, em que o crédito não se pode extinguir em relação a um dos credores ou devedores, mas apenas globalmente, escreve Jhering na sua primeira carta:

«Entre elas e as chamadas obrigações solidárias deve existir uma diferença tão importante como entre um animal bípede e um quadrúpude. Pergunte-se, porém, aos nosso zoólogos juristas em que se traduz na prática aquela diferença quando se trata de atrelar um arado ao bípede ou ao quadrúpede e creio que a maior parte deles nos deixarão sem resposta e desculpar-se-ão dizendo que a Zoologia nada tem a ver com arados». Dito.

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