Decisão interessante, a resolver tema que a mesma considera polémica, a decorrente do Acórdão da Relação do Porto de 1301.2021 [proferido no processo n.º 345/18.3PASTS.P1, relator Borges Martins, texto integral aqui] quando consigna que a morte do assistente, que entretanto requerera instrução, não permite aos seus sucessores virem desistir da fase que aquele desencadeara.
Consta do sumário do aresto em causa: «A morte do/a assistente não extingue a instrução por ele/a requerida, mesmo que os seus sucessores indicados no artigo 113.º, n.º 2, do Código Penal pretendam essa extinção, não sendo aplicável analogicamente a esta situação o disposto nesse preceito.».
Cita-se o artigo do Código Penal em causa para melhor compreensão do tema:
«Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence às pessoas a seguir indicadas, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime:
a) Ao cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou à pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, aos descendentes e aos adoptados e aos ascendentes e aos adoptantes; e, na sua falta
b) Aos irmãos e seus descendentes.»
Questão que o acórdão abordou, pela lógica da legitimação processual, foi, pois, a de saber se morto o assistente a ele sucediam em termos de adquirirem o respectivo estatuto, os respectivos sucessores, rememorando, para fundamentar o seu raciocínio, o previsto no artigo 68º do Código de Processo Penal [quando admite os ofendidos a integrarem, com legitimidade, o estatuto de assistentes] para depois ponderar a possibilidade de se equiparar em efeitos o previsto no artigo 113º, n,º 2 do Código Penal quanto à morte do ofendido ao caso de morte do assistente.
Citando o excerto relevante:
«No caso que nos interessa, tal faculdade pode ser atribuída ao ofendido, considerado na sua veste de titular do interesse que a lei quis proteger com a incriminação – al. a).
Também aqui se concebe o lugar paralelo ao analisado supra, no caso de morte do ofendido – atribuição da possibilidade de se constituírem assistentes tanto o cônjuge como outros familiares próximos. Igualmente se o ofendido não tiver renunciado à queixa, entretanto – presumindo-se que já a apresentou previamente – al. c).
Só no caso de o ofendido ter morrido sem se ter constituído assistente tem lugar a aplicação desta norma – cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 16.ª edição, 2007.
Como escreveu José António Barreiros (Processo Penal-1, Almedina, 1981, pág. 504), a posição judiciária de assistente extingue-se com a morte do individuo que revestia tal estatuto. Nesse caso, a lei permite que que se habilitem as pessoas previstas no n.º 4 do art.º 4.º do DL n.º 35 007 – norma correspondente ao actual art.º 68.º,n.º 1, al. c) do CPP.
Na hipótese dos autos, vemos que a Assistente, entretanto falecida, requerera abertura de instrução. Os substitutos legais possíveis renunciaram a tal faculdade.
Determina o art.º 69.º, n.º2, do CPP que compete, em especial, ao assistente oferecer provas; e requerer as diligências que se afigurarem necessárias, deduzir acusação independente da do MP e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza; interpor recurso das decisões que o afectem.
A Assistente exerceu tais poderes que a lei lhe confere.
Entretanto, deixou de haver nos autos Assistente como sujeito processual capaz ou interessado em exercer tais poderes no futuro.
Mas, e no que diz respeito ao RAI anteriormente deduzido?
Este tinha sido judicialmente admitido; e tinha sido publicado despacho determinativo de inquirição de duas testemunhas no mesmo indicadas; e de realização subsequente e imediata do debate instrutório.
No âmbito do processo civil – sempre a ter em conta, dado o disposto no art.º 4.º do CPP – vigora o princípio da aquisição processual: Os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária (…). Quanto ao seu outro aspecto, o princípio traduz-se na comunidade das provas. Desta comunidade deriva que a parte não pode renunciar às suas provas, uma vez produzidas – embora delas possa desistir antes disso (arg. do art.º 571.º) resulta claramente do disposto no art.º 515.º. – cfr. arts. 465.º, 594.º,n.º 4 e 595.º, todos do NCPC, Manuel da Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 383.
No novo CPC determina o art.º 498.º, n.2 que a parte pode desistir a todo tempo da inquirição de testemunhas que tenha oferecido, sem prejuízo da possibilidade de inquirição oficiosa, nos termos do art.º 526.º.
Não existe norma equivalente no CPP e cremos que a aplicação da mesma no processo penal é pelo menos polémica, dado o princípio de demanda da verdade material que constitui a sua trave mestra.
No caso dos presentes autos, constata que a Assistente ofereceu prova de duas testemunhas; não tendo as mesmas ainda sido inquiridas.
Ora, o JIC, nos termos do disposto no art.º 291.º, n.º1 do CPP tem a possibilidade de indeferir a produção de depoimento de testemunhas que entenda inúteis para a finalidade da instrução – que é comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem de submeter ou não a causa a julgamento. Pode inclusivamente rejeitar a repetição de depoimentos já prestados em inquérito – n.º 3 do citado art.º 291.º do CPP.
Se designou data para a sua inquirição e imediata realização do debate instrutório, foi porque considerou o respectivo depoimento como à partida útil para a realização daquela finalidade.
Por outro lado, a não presença do Assistente não afecta a regularidade deste, conforme teor do art.º 297.º do CPP; recordando que tal debate e decisão instrutória não deixarão de reflectir sobre os pressupostos processuais, maxime, legitimidade para prossecução do procedimento criminal – questão não abordada pela decisão recorrida.»
Ora o tema tem, permito-me opinar, um outro ângulo de perspectiva, o qual conduzirá, no entanto, ao mesmo nó problemático: é que sendo discutível que ao assistente falecido possam suceder, na aquisição do estatuto respectivo, os seus sucessores [e aí os que estão indicados do citado n.º 2 do artigo 113º do Código Penal quanto ao caso da morte do ofendido], tendendo eu, numa primeira reflexão, a divergir da conclusão do aresto a que me refiro, já parece que, centrando-se a análise da matéria agora na questão da admissibilidade da desistência da instrução, o tema ganha outra dimensão e outra generalidade: é que, admitir-se que, tratando-se de fase facultativa, pode ocorrer desistência da mesma [ainda que possa ser questão saber se uma vez admitida tal fase não se torna irrecusável], tal faculdade, a ser pecúlio do assistente constituído, não haverá, creio, razão para ser negada a quem lhe suceder no estatuto [a admitir-se, e voltamos ao início, que a norma de habilitação para tal sucessão seja, em aplicação analógica, o citado artigo 113º, n.º 2 do Código Penal].