É este o teor integral da Directiva n.º 4/2020 da Procuradora-Geral da República que tem suscitado polémica pública no que se refere ao exercício de poderes hierárquicos em processo penal, a qual se articula com o teor da Directiva 5/2014 [ver aqui] e revoga a Directiva 1/2020 [ver aqui]. A áspera reacção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público pode ler-se aqui.
Diretiva n.º 4/2020
O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia caraterizada pela sua vinculação a critérios de legalidade e objetividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados do Ministério Público às diretivas, ordens e instruções previstas no seu Estatuto (artigos 219.º da Constituição da República Portuguesa e 3.º do Estatuto do Ministério Público (EMP), aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 29 de agosto).
Estruturando-se o Ministério Público, constitucional e estatutariamente, como uma magistratura hierarquizada, os magistrados que a integram são responsáveis e hierarquicamente subordinados, respondendo, nos termos da lei, pelo cumprimento dos seus deveres e pela observância das diretivas, ordens e instruções que receberem.
A autonomia e a hierarquia do Ministério Público, de natureza funcional, a par com a responsabilidade dos seus magistrados, constituem garantia constitucional da promoção da igualdade de todos os cidadãos perante a lei e, simultaneamente, da unidade, eficiência e celeridade da sua atuação.
Decorre do quadro constitucional, legal e estatuário que o exercício dos poderes hierárquicos assenta em intervenção de natureza diretiva delimitada no seu âmbito e conteúdo pelo Estatuto do Ministério Público e pelas leis do processo.
A clarificação da intervenção hierárquica em processo penal que decorre do novo Estatuto do Ministério Público mantém inalterado o quadro constitucional, legal e estatutário vigente do exercício dos poderes de direção pelo magistrado do Ministério Público hierarca, destacando dois planos distintos do exercício do poder de direção que, em todo o caso, não conflituam nem se anulam, antes se intersetam.
Por um lado, o exercício dos poderes de intervenção processual penal legalmente previstos implica a prática de atos processuais que produzem efeitos intraprocessuais relevantes, não podendo ser objeto de recusa as decisões proferidas por via hierárquica nos termos da lei de processo [artigo 100.º, n.º 6, alínea a) do EMP].
Por outro, o exercício de poderes de direção, inelutavelmente sujeito a limites legal e estatutariamente consagrados que refletem a concordância prática entre a autonomia interna dos magistrados e o exercício daqueles poderes.
A autonomia interna dos magistrados do Ministério Público pressupõe tanto a vinculação aos critérios de objetividade e de legalidade, como a sujeição às diretivas, ordens e instruções dos superiores hierárquicos, balanceada pela salvaguarda da sua consciência jurídica, também esta condição essencial do exercício de funções e, consequentemente, da administração da justiça.
Numa tal conformação destaca-se, por um lado, o poder de os magistrados solicitarem ao superior hierárquico que a ordem ou instrução sejam emitidas por escrito, e o dever de o hierarca emitir a ordem por aquela forma quando se destine a produzir efeitos em processo determinado. Por outro lado, evidencia-se o exercício do dever de recusa de cumprimento de ordens ilegais e o poder de recusa com fundamento em grave violação da consciência jurídica do destinatário da resolução superior.
A emissão de um ato com eficácia diretiva e de aplicação direta a um determinado caso concreto não consubstancia a prática de ato de natureza processual em sentido próprio, tal como sustentado pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (cf. Pareceres n.os 33/2019 e 9/2020).
O ato processual consequente, praticado em obediência àquela ordem, configura um ato processual em sentido próprio porque produzido na prossecução do exercício da ação penal e com a devida consagração legal expressa nas leis adjetivas. Nesse sentido, tal despacho deve conter, na respetiva fundamentação, referência inequívoca à decisão hierárquica que o conforma.
O exercício dos poderes hierárquicos de supervisão e direção é sempre reduzido a escrito (n.º 1 do artigo 100.º do EMP), imposição legal que visa o controlo interno, desde logo pelo magistrado que recebe a ordem, como também o controlo externo, desde logo pelos sujeitos processuais.
Daí que, perante suspeita de ilegalidade do ato do hierarca – onde se incluem causas de incompetência ou de impedimento para a sua prática – terão os sujeitos processuais legítimo interesse em conhecer a ordem ou instrução que determinou a prática do ato processual pelo magistrado subordinado.
Como corolário dos princípios da legalidade e da transparência, bem como do direito a um processo justo e equitativo, toda a atuação funcional do Ministério Público no processo penal é suscetível de ser conhecida e sindicada por quem é parte legítima nos termos das normas legais de acesso aos processos.
As crescentes exigências do exercício da função e o princípio de unidade que carateriza esta magistratura hierarquizada vêm, tendencialmente, afastando a delimitação da autonomia interna na perspetiva de uma intervenção processual isolada.
Antes demonstram que o cumprimento dos instrumentos hierárquicos e a articulação próxima com o imediato hierarca são práticas que contribuem para o fortalecimento, a uniformidade e a elevada competência da sua atuação funcional de que a boa administração da justiça é credora.
Com o presente instrumento pretende-se uniformizar procedimentos no âmbito do exercício de poderes hierárquicos em processo penal e, pela sua especial relação com aquele exercício, introduzem-se orientações relativas ao exercício hierárquico do poder diretivo de avocação do inquérito. Por outro lado, clarifica-se o regime atinente às comunicações hierárquicas de determinadas realidades factuais objeto de investigação.
Serão pois enunciados princípios orientadores dos magistrados do Ministério Público no âmbito das relações hierárquicas, desde logo quanto ao cumprimento das regras estabelecidas nos instrumentos hierárquicos vigentes, e de, na avaliação que efetuem, em caso de dúvida, se articularem com o imediato superior hierárquico, atuação própria e salutar de uma magistratura una e hierarquizada.
Impõe-se, igualmente, enunciar princípios orientadores relativamente ao exercício dos poderes de direção que produzam efeitos em concretos processos e que não se traduzam em atos processuais em sentido próprio, de modo a garantir a transparência da sua emissão e a reação estatutariamente prevista do magistrado subordinado, enquanto garantia da sua autonomia.
Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.os 1 e 2, do artigo 11.º e na alínea b), do n.º 2, do artigo 19.º do Estatuto do Ministério Público, com fundamento nas considerações assinaladas, e cuja interpretação deve ser sustentada e observada por todos os magistrados do Ministério Público, determino o seguinte:
I – Exercício de poderes hierárquicos de direção
1 – No exercício dos poderes hierárquicos de direção, o imediato superior hierárquico emana ordens e instruções conformadoras da atuação dos seus subordinados, nos termos estabelecidos na Diretiva n.º 5/2014/PGR, de 19 de novembro.
2 – As ordens e instruções que se destinem a produzir efeitos num determinado processo, e que não constituam atos processuais em sentido próprio, são sempre reduzidas a escrito e registadas pelo hierarca que as emana em dossiê de preparação e acompanhamento, já instaurado ou a instaurar.
3 – O dossiê a que se refere o ponto anterior é transmitido ao magistrado a quem as ordens ou instruções são dirigidas.
4 – O dossiê de preparação e acompanhamento deverá ser sinalizado na capa física e eletrónica do processo em que a ordem ou instrução se destina a produzir efeitos.
5 – As ordens e instruções a que se refere o ponto 2 são sempre comunicadas ao imediato superior hierárquico do magistrado que as emanou.
6 – Quando, em obediência a ordem ou instrução a que se refere o ponto 2, cumprir o determinado pelo seu imediato superior hierárquico, o magistrado titular deve, na decisão a proferir no processo, fazer expressa menção de que atua por dever de obediência hierárquica, identificar, sinteticamente e com ponderação dos critérios estabelecidos para o acesso por sujeitos processuais, o conteúdo da ordem ou instrução recebida e indicar a identidade e a qualidade do hierarca que a emitiu.
7 – A menção, nos autos, da ordem ou instrução emanada é da competência exclusiva do magistrado que dela foi destinatário.
II – Recusa de cumprimento
1 – A declaração de recusa de ordens ou instruções que se destinem a produzir efeitos em concreto processo, e que não constituam atos processuais em sentido próprio praticados no âmbito de intervenções hierárquicas previstas na lei do processo, deve ser:
1.1 – Sempre reduzida a escrito e registada no dossiê de preparação e acompanhamento referido em I.2 e I.3;
1.2 – Devidamente fundamentada, com indicação da concreta causa da recusa e dos motivos, de facto e de direito, que a fundamentam;
1.3 – Comunicada simultaneamente ao magistrado que emitiu a ordem ou instrução e ao seu imediato superior hierárquico.
III – Acesso às ordens e instruções
1 – As ordens e instruções a que se refere o ponto I.2., e a posição que sobre a mesma for assumida pelo magistrado destinatário, podem ser consultadas por quem assuma a qualidade de sujeito ou interveniente processual no processo onde a mesma produziu efeitos, quando se verifiquem os seguintes pressupostos, de natureza cumulativa:
a) Seja titular de interesse legítimo para o efeito;
b) O seu conhecimento não prejudique os interesses da investigação, em particular nas situações em que o inquérito se encontre sujeito a segredo de justiça, e enquanto essas circunstâncias se verificarem;
c) A consulta não seja suscetível de ofender direitos fundamentais de outros sujeitos ou intervenientes processuais.
2 – Para salvaguarda dos interesses a que se referem as alíneas b) e c) deverá, em todo o caso, ser ponderado o acesso a parte da decisão em causa.
3 – É competente para decidir o pedido de acesso o hierarca que emanou a ordem ou instrução.
4 – Para efeitos da decisão a que se refere o ponto anterior, o magistrado titular do inquérito:
a) Elabora informação sobre a verificação dos pressupostos para o acesso e pronuncia-se quanto ao mérito do pedido;
b) Remete, pelo meio mais expedito, o dossiê de preparação e acompanhamento ao hierarca que emanou a ordem ou instrução, dele devendo constar a informação elaborada e, se necessário, outros elementos que habilitem à decisão.
5 – Da recusa de acesso cabe reapreciação hierárquica para o magistrado hierarquicamente superior.
IV – Impedimentos
O imediato superior hierárquico que, em momento anterior, tenha emanado ordem ou instrução hierárquica que não constitua ato processual em sentido próprio, deve, em caso de intervenção hierárquica nominada no mesmo inquérito (v.g. ao abrigo do artigo 278.º e do n.º 2 do artigo 279.º do Código de Processo Penal), ponderar a declaração do seu impedimento ou pedido de escusa, nos termos estabelecidos no Código de Processo Penal (v.g. quando a ordem ou instrução emitida tenha sido determinante para a conformação do resultado final do inquérito).
V – Comunicações hierárquicas
1 – Nos processos que tenham, ou se preveja que venham a ter, repercussão pública, decorrente, designadamente, da excecional complexidade e gravidade dos crimes e das suas consequências, da particular sensibilidade que revistam em razão da relevância dos interesses envolvidos, da qualidade dos sujeitos e intervenientes processuais (v.g. pessoas particularmente expostas) e da especial vulnerabilidade das vítimas, são objeto de comunicação obrigatória ao imediato superior hierárquico:
a) A instauração do inquérito;
b) Os atos processuais relevantes que tenham, ou se preveja venham a ter, especial repercussão pública;
c) As decisões finais proferidas em inquérito e as decisões finais proferidas nas fases subsequentes do processo.
2 – As comunicações a que se refere o ponto anterior, bem como as efetuadas em observância de diretivas, instruções e ordens previamente emanadas pelas estruturas hierárquicas competentes, ao abrigo dos respetivos poderes legais e estatuários de hierarquia, devem ser registadas e acompanhadas em dossiê, a instaurar ou já instaurado, da titularidade do magistrado hierarca.
VI – Avocação de inquéritos
1 – Os Procuradores-Gerais Regionais, de acordo com as caraterísticas das respetivas Comarcas e Departamentos de Investigação e Ação Penal, ponderarão a emissão de orientações que definam regras de avocação de inquéritos, em conformidade com regras legais estabelecidas no Estatuto do Ministério Público.
2 – Sem prejuízo de outros critérios que se considerem relevantes, designadamente relativos a específicas tipologias criminais ou a exigências de intervenção uniforme, e salvaguardada a avaliação que em concreto seja efetuada sobre a inadequação ou a desnecessidade de avocação, deverão ser ponderadas orientações dirigidas à avocação de inquéritos que correspondam aos critérios estabelecidos no ponto V.1.
VII – Disposições finais
1 – As regras ora adotadas não prejudicam os procedimentos e orientações constantes de outras determinações da Procuradoria-Geral da República antes formuladas e ainda vigentes, com elas devendo, se disso for caso, ser conjugadas, designadamente as determinações constantes das Circulares da PGR n.os 11/1995, 12/1999, 6/2002, 3/2011 e 5/2012.
2 – Revoga-se a Diretiva 1/2020/PGR, de 4 de fevereiro, e todos os instrumentos hierárquicos emitidos por qualquer órgão ou estrutura hierárquica do Ministério Público, de natureza vinculativa ou não, nos segmentos que contrariem ou conflituem com as determinações constantes da presente diretiva.
12 de novembro de 2020. – A Procuradora-Geral da República, Lucília Gago.