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Luigi Molinari: vergogna di parlare

Há livros cuja menção convida ao sorriso derrogatório, como se falássemos de menoridades: são apenas opúsculos, ingénuos na análise, irrealistas no que propõem, ridículos, talvez mesmo, para quantos estão no Direito com contraída sisudez e, sobretudo, desinteresse moral. 
E no entanto, escritos com o coração, fruto de sentimentos verdadeiros, fraca teoria exponham, fruto sendo de violência sentida, exigem respeito e, talvez, sentimento de pudor respeitoso da parte de quem queira ser humilde leitor e não arrogante censor.
Digo isto ante a tradução que me chegou da Argentina da monografia de Luigi Molinari  Il tramonto del Diritto Penale, que na versão em castelhano [Ediciones Olejnik, 2019], saiu literalmente como El Ocaso del Derecho Penal. A primeira edição italiana foi publicada, em edição de autor, em 1904, a segunda em 1909 [e pode ser lida aqui, pois integra domínio público].
O autor, advogado, militante da causa anarquista, sofreu em 1893 pesada pena de 23 anos de prisão por crime político, a qual acabaria reduzida a sete anos e meio, devido ao escândalo público que a violência da mesma, decretada manu militari, suscitou então. Compreensível, pois, que as primeiras palavras do breve texto sejam: «Scrivo senza rancore. Il rancore genera l’odio e la vendetta, ed è appunto contro l’odio e la vendetta, brutalmente esercitata dalla collettività in nome di una pretesa civiltà, di una pretesa giustizia, che mi accingo a scrivere».
Molinari nasceu em Crema [Itália] em 1866 e morreu em Milão em 1918. A sua vida é a da luta pelo ideal anarquista, pelo qual proferiu conferências e dirigiu publicações periódicas, uma das quais a L’Università popolare, que dirigiu até à sua morte.
Os correios trouxeram-me esta semana uma biografia escrita sobre a sua pessoa, escrita por Learco Zanardi; como não a li ainda, não a refiro, pelo hábito de só falar do que sei; a seu tempo, talvez.
Mas o que nos traz este folheto que interesse neste mundo em que a criminalidade se sofisticou, o medo campeia na sociedade e o Direito se tornou para alguns uma mera tecnocracia?
Em primeiro lugar [e primeiro sem ser pela ordem expositiva], a noção do carácter relativo do conceito de delito, a sua natureza arbitrária, donde ilegítima enquanto categoria conceptual. 
Para chegar aqui, e afinal daqui partir, Molinari lança como primeiro tema de reflexão a circunstância do Código Penal [fala no italiano mas poderia referir-se a qualquer outro] não definir o que seja crime nem a razão para as penas, tema sobre o qual, diz com ironia, «os nossos legisladores se envergonharam de falar» [«hanno avuto vergogna di parlare»]; as leis estipulam listas de crimes, não se comprometem com a noção de criminalidade, e assim, pela extensão e retracção, é possível fazer triunfar critérios de casuística que servindo apenas interesses, serve interesses que são [fazendo-se eco do que viria para a filosofia jurídica pela mão do marxismo], os de classe social e [politizando] os das castas parlamentares que ditam as leis incriminadoras. É que houvesse definição teria de haver critério geral e fundamentação racional para o mesmo; a inexistir tudo voga em função do que seja o “entendimento” do tempo [no que às leis respeita enquanto definidoras da criminalidade abstracta e sua escala punitiva] e do instante [no que se refere às sentenças enquanto enunciadoras do crime concreto e sua penalidade].
Depois, e ressoando o pensamento positiva então em voga e traduzindo uma decorrência do cientismo igualmente disseminado, ele um darwinista convicto, há a ideia da conduta que as leis tomam como criminosas como sendo apenas enfermidades mentais ou de degenerações físicas pelas quais fica minado o livre arbítrio e, deste modo, a justiça da punição.
Tudo isto é explanado como num panfleto militante, redigido com ardor revolucionário: «il delitto non esiste! È un’ombra vana che noi perseguitiamo, è un altro altare che l’ignoranza e la superstizione a servigio della brutale prepotenza hanno innalzato e che la Scienza deve abbattere e frantumare; ecco cosa è il delitto!»
De seguida, nesta mesma linha argumentativa, a ideia de que os afortunados de meios conseguem, com recurso a perícias remuneradas e advocacia que os sirva, pleitear a sua imputabilidade total ou reduzida, socorrendo eles, os privilegiados e a sua ciência, que assim os serve, da noção do acto enquanto doença, o que, para os desprovidos, é considerada apenas defesa pretextual destinada a legitimar o carácter facinoroso da conduta, desculpa inventada de modo improvisado e assim à partida condenada ao insucesso.
Enfim, continuaríamos se isso não fosse retirar o convite à leitura. 
Não surpreende que Molinari entenda que o ataque à propriedade privada só será crime enquanto esta existir e haveria que aboli-la, na lógica proudhoniana, por ser roubo e roubo não ser atentar contra ela; não espanta que conclua que é a sociedade que gera os delinquentes, e que a reabilitação é uma bandeira de propaganda do sistema mas que o sistema não alcança: «La società, lurida sentina di vizi e brutture, è inesorabile per chi si è lasciato cogliere in peccato.»; não abisma ver constatar que é a miséria, as necessidades irrealizadas, as pulsões recalcadas que estão na origem nos actos desesperados que a lei criminaliza.
Tudo isto será antiquado, a contemporânea criminologia radical terá ido mais longe, haverá aqui, como substrato ideológico, uma ideologia de esquerda revolucionária e assim pensamento situado. Sim. Mas problema é saber se em certos momentos do texto não paramos para reflectir e não nos achamos ante o desconforto de uma realidade que incomoda e que, por isso, recusamos enfrentar no nosso quotidiano, incluindo o profissional. 
Claro que há no mundo da dita criminalidade, os actos intencionais ditados pela negatividade ambiciosa, reino da cobiça e da rapacidade. Disso não se trata neste livrinho. Mas, seguindo-lhe as passadas, não dará para perguntar se não será o mundo concorrencial, o princípio da acumulação, o reino da quantidade enquanto valor, o materialismo como filosofia e a riqueza individual como triunfo, o consumismo como ânsia social, que ditam todos estes actos pelos quais são perseguidos alguns para que outros possam continuar impunes, afinal, de novo, a natureza relativa e pretextual do Direito Criminal, servido por sacerdotes laicos, sob a enganadora litania da sua absolutização dita dogmática?
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