De todos os lados surgem avisos: os populismos sociais tornam-se autoritarismos políticos. Que sejam reposições do nazismo, do fascismo, supõe apenas que a História se repita pela mesma forma; pode ser diverso apenas o modo. Por isso no Direito há que ficar aviso: afinal, o totalitarismo também ajustou o jurídico às suas necessidades e dele se serviu e nele encontrou os seus servidores. E muitas das suas criaturas perduraram.
Há os que, vivendo hoje o mundo da eficácia e do utilitarismo, trocam o saber como foi pela interesse quanto ao que há.
Nem tudo está, porém, perdido. Fica para esses outros esta nota de leitura.
Eugenio Raul Zaffaroni, magistrados e professor argentino escreveu, Francisco Muñoz Conde, professor em Sevilha, prefaciou. Editado em 2017 em Buenos Aires.
Trata-se de um aprofundado e documentado estudo sobre quanto o nazismo construiu para o seu Direito, desde a escola jurídica de Kiel [essa Stosstruppfakultät, Faculdade de Tropa de Assalto – e nela os nomes de dois dos seus fautores principais, Georg Dahm [1904-1963] e Friedrich Schaffstein [1905-2001] – à arquitectura do Estado total nacional-socialista, como estrutura que o Direito serviria, mas sobretudo dos conceitos jurídicos que dali emergiram como instrumentos de sustentação, defesa e disseminação do III Reich e seu espaço vital.
Estou ainda a ler, porque não é texto de apreensão imediata e alguma da forma de expor reconduz o leitor à necessidade de clarificar o sentido do discurso, por vezes reiterativo.
Mas de imediato permito-me ir buscar ao texto do prefácio e da narrativa o elenco, parcial seguramente, do que foram os instrumentos forjados pelos teóricos do nazismo jurídico, aptos a dar, à boa maneira alemã, consistência teórica e legitimação normativa às ideias que, oriundas da política que o Führerprinzip definia e que funcionavam como critério último de interpretação das leis e guia seguro para a sua correcta aplicação, corporizando esse autêntico “vendaval jurídico” na Europa dos anos trinta e quarenta do século vinte e a que poucos resistiram – entre estes Gustav Radbruch – e muitos cederam e se adaptaram- como Edmund Mezger.
Ei-los, pois [entre tantos], no plano da dita “dogmática” jurídica:
-» violação do dever como núcleo do conceito de ilicitude [do “injusto”];
-» crítica ao conceito de bem jurídico como delimitador dos limites da tipicidade e critério orientador da interpretação normativa;
-» concepção de Direito Penal de autor;
-» formulação do Direito Penal da vontade;
-» hiper-valorização dos crimes omissivos;
-» crítica da teoria da não exigibilidade;
-» demolição do conceito de culpabilidade;
-» formulação de uma teoria unitária do crime;
-» admissão da analogia incriminatória;
-» profusão de tipos de crime de perigo abstracto;
-» punição da tentativa de instigação;
-» punição de actos preparatórios e de tentativas inidóneas;
-» tipificação da associação criminosa com fundamento no mero acordo de vontades;
-» sobrecarga punitiva nomeadamente em crimes contra interesses públicos.
Dir-se-à que há em alguns conformações oriundas do passado; sem dúvida, mas com uma reformulação apta a torná-los úteis à Nova Ordem.
É este o perigo das consciências que adormecem: forjam armas para a burocracia da repressão. Primeiro, para enfrentar o excepcional, depois, tarde demais, está o geral contaminado. Só lhes resta dizer que, afinal, não se tinham dado conta.
É este o perigo das consciências que adormecem: forjam armas para a burocracia da repressão. Primeiro, para enfrentar o excepcional, depois, tarde demais, está o geral contaminado. Só lhes resta dizer que, afinal, não se tinham dado conta.